Não há dúvida que o maior evento da semana que se encerrou foi a soltura do ex-presidente Lula, após 580 encarcerado em uma sala na Polícia Federal, em Curitiba. Independente do que se acha dessa figura política, há inegáveis elementos de forte valor como notícia aqui: a prisão de alguém que ocupou o posto mais alto do país, por duas vezes; um acontecimento sobre um indivíduo cercado de uma história e de uma mítica (que, por vezes, se misturam) em torno de si, e que acende sentimentos fortes na população, tanto a favor quanto contra ele; e a suspeita forte de que sua condenação envolva uma série de injustiças (as pistas estão evidentes para os que leram a série de reportagens do site The Intercept Brasil), o que levanta a possibilidade de julgamentos controversos possam ocorrer com qualquer um.
Em suma, era uma notícia digna de um plantão. No entanto, na noite de sexta-feira (Lula havia sido solto por volta das 17h40) dessa breaking news, a rede Globo apresentou uma lógica estranha em seu principal telejornal, o Jornal Nacional. A notícia da soltura de Lula era a primeira da escalada (aquele texto lido para a câmera pelos apresentadores bem no começo do programa, elencando todas as notícias). Mas, ao iniciar o telejornal, a primeira reportagem apresentada foi a dos 30 anos da queda do Berlim, na Alemanha. Depois de uma quantidade de outras reportagens, Lula aparece bem no meio do telejornal, sem destaque, em uma matéria protocolar apresentada sem muita ênfase pelos apresentadores, Renata Vasconcellos e William Bonner, durando cerca de uns cinco minutos ao máximo. Como destacou o crítico Chico Barney, para o Jornal Nacional, este foi um dia qualquer.
Algum leitor deste texto talvez esteja se perguntar: ora, mas o que se esperava, uma comemoração dentro do Jornal Nacional? Obviamente não, e aqui não atenho nem exatamente aos discursos atrelados na reportagem do maior telejornal do Brasil, mas a outros sentidos que ela faz circular, para além das palavras. Se os meios de comunicação de massa são como uma janela para o mundo, é bastante claro que esta janela ajuda a decidir quais ângulos da realidade iremos olhar. Por consequência, a TV é uma das responsáveis por consolidar de que forma enxergaremos essa paisagem que nos cerca.
Por vezes, as mídias causam sentidos não pelo que dizem ou mostram, mas por meio da “moldura” com que cercam os acontecimentos. No caso da libertação de um ex-presidente, há aqui um sentido de não-importância de um fato.
Em outras palavras: por vezes, as mídias causam sentidos não pelo que dizem ou mostram, mas por meio da “moldura” com que cercam os acontecimentos. No caso da libertação de um ex-presidente, há aqui um sentido de não-importância de um fato que, claramente, deveria ser a primeira manchete de qualquer jornal do país. A agenda estipulada para o dia não colocou a notícia no início nem no final (de forma a forçar que o espectador ficasse até o fim, meio como fazem as novelas), mas no meio. Encerrada a reportagem (pontuando, didaticamente, que a soltura de Lula não significa sua absolvição), seguiu-se aquele protocolo da apresentação dos dois jornalistas que encabeçariam o Jornal Nacional no dia seguinte (que, por fim, configura como uma espécie de “notícia” interna da própria emissora).
Por que a Globo reservou espaço tão mirrado no principal telejornal do país para uma notícia dessa relevância? É difícil imaginar uma resposta, mas uma explicação possível talvez seja uma intenção de equilibrar os ânimos dos apoiadores de Bolsonaro (e do próprio presidente), que veem a grande emissora sob forte desconfiança. Recentemente, numa live ocorrida após a divulgação de uma matéria que trazia dados de uma possível ligação de Bolsonaro com os acusados de matar a vereadora Marielle Franco, o presidente mostrou-se extremamente descontrolado e acusatório quanto a Globo – ameaçando, inclusive, de não renovar sua concessão, que é pública.
Deste modo, a Globo passaria a impressão de imparcialidade – não por acaso, Lula fez um pronunciamento público no dia seguinte e disse que a emissora “continua uma vergonha”, repetindo um dos termos que também havia sido usado por Bolsonaro em sua live para achincalhar a emissora. Pois bem, talvez ser acusada de problemas pelos dois ângulos da polarização política não deixe de ser um sintoma positivo – sinal de que há algum esforço, pelo menos na superfície, em “bater” em ambos os lados e não manter-se atrelado a interesses específicos.

Há uma outra “vingança” possível que é a de deliberadamente não criar uma narrativa heroica a Lula, tal como parece ser seu desejo. Vale lembrar que, conforme bem registrado em algumas reportagens, Lula e o PT buscaram controlar com firmeza as imagens (e, portanto, a narrativa) que circulariam à ocasião em que o ex-presidente foi obrigado a entregar-se à polícia. Queriam, portanto, criar um mito – ou ao menos comandar a forma pela qual a cena entraria na posteridade.
Não obstante, a cobertura de outros canais, como a Band, dedicou bem mais tempo à novidade, numa abordagem mais contínua e, consequentemente, mais aprofundada. No Brasil Urgente, por exemplo, José Luiz Datena estendeu longa cobertura e chegou a entrevistar o presidente Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, sobre a decisão acerca da prisão em segunda instância. Curiosamente, o jornalismo popular “emoldurou” melhor a notícia que o chamado jornalismo padrão.