Em seu projeto de refazer novelas tidas como clássicos, a TV Globo estreou, no dia 22 de janeiro, o remake de Renascer, novela de 1993 escrita por Benedito Ruy Barbosa, com direção geral de Luiz Fernando Carvalho. Sucesso de audiência e crítica, o folhetim se passa na Bahia e aborda vários temas, centralizados pela vida de José Inocêncio, um fazendeiro de cacau, e na sua relação com seus filhos. Os jornalistas da Escotilha Maura Martins e Paulo Camargo tecem, nesse texto, suas impressões sobre a primeira semana da novela.
Maura Martins: “De volta ao mundo dos sonhos do Brasil profundo em Renascer“
No recém-lançado livro Gilberto Braga – O Balzac da Globo, de Artur Xexéo e Maurício Stycer, os autores contam, de maneira muito didática, como a Globo quis dar uma guinada em suas novelas mais melodramáticas e fantasiosas para apostar uma pegada mais contemporânea – cenário no qual as novelas de Braga se encaixaram perfeitamente. Pois é interessante pensarmos que, dentro do cânone recente das telenovelas, algumas das mais cultuadas pelos fãs estão no âmbito do que poderíamos chamar de novelas rurais, ou que falam do “Brasil profundo”, com toques fantásticos.
Renascer é uma dessas obras. Exibida entre março e novembro de 1993, o novelão escrito por Benedito Ruy Barbosa cativou o público brasileiro ao trazer uma trama familiar densa, ambientada em Ilhéus, na Bahia. Há um pano de fundo de comentário social e político, que fala sobre a luta pelas terras e a corrida pela riqueza, mas o âmago se centra no drama de José Inocêncio, um fazendeiro de cacau que tem uma péssima relação com o filho mais novo, por uma raiva que tangencia os limites da mente consciente: sua amada mulher, Santinha, morreu durante o seu parto.
“31 anos depois, Renascer foi trazida de volta à Globo, mais uma vez, com ares de superprodução”.
Maura Martins
31 anos depois, Renascer foi trazida de volta à Globo, mais uma vez, com ares de superprodução. E vem na mesma leva de Pantanal, também adaptada por Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa, e que já se mostrou capaz de respeitar e reinventar uma história criada pelo avô. Aparentemente, o universo das duas novelas é o mesmo, inclusive com a repetição de alguns atores e atrizes – como o próprio protagonista, vivido por Marcos Palmeira.
A primeira semana do remake começou de forma arrebatadora, apostando em uma narrativa estendida, com ares de longa-metragem, assim como em novos papéis – como a Cândida, de Maria Fernanda Cândido, que vende a fazenda ao “coronelzinho” José Inocêncio (Humberto Carrão na primeira fase), e um vilão clássico, o coronel Firmino (Enrique Diaz, impecável). Também é impossível não destacar a interpretação potente de Fabio Lago como o violento Venâncio, o “pai-boi” de Santinha (Duda Santos, também excelente).
O que fica claro é que, frente ao fracasso (de crítica e audiência) da antecessora Terra e Paixão, também uma novela rural, a Globo volta, mais uma vez, a jogar o sarrafo lá em cima, jogando na estratégia de refazer um clássico. Deu muito certo em Pantanal, que voltou revigorada sob a pena de Bruno Luperi, e parece ter tudo para dar certo mais uma vez, com Renascer.
Um dos segredos das duas novelas pode ser o de reativar uma temática que não costuma estar presentes nas obras mais realistas ou focadas na contemporaneidade: a existência do mágico e do sobrenatural, que são entendidos como fonte de sabedorias já esquecidas na nossa atribulada vida urbana.
Se, em Pantanal, havia o mito da mulher-onça e as falas sábias do Homem do Rio, em Renascer, os passos de José Inocêncio são sustentados pelo seu destino cravado no pé de jequitibá, e no cramulhão que ele mantém na garrafa. São acenos deliciosos à razão primordial que leva os brasileiros, a tantas décadas, ao consumo das telenovelas: o escape, ainda que breve, da dureza do cotidiano para mergulhar em um mundo de sonho. A julgar pela primeira semana, a novela promete nos trazer uns bons meses de escapismo saudável.
Paulo Camargo: “A pretitude sai da gaveta em Renascer“
A reverência profunda de Bruno Luperi à obra de seu avô, o renomado teledramaturgo Benedito Ruy Barbosa, não apenas o inspira, mas o impulsiona a reescrever suas obras televisivas com um olhar crítico e, sobretudo, contemporâneo. A evidência desse compromisso manifestou-se de forma marcante na primeira semana de Renascer, na qual ficou claro que a trama original da novela, exibida em 1993 pela Rede Globo, será respeitada, assim como aconteceu com Pantanal.
“O aspecto mais notável e evidente deste remake é, inversamente à primeira versão, a ênfase na população negra da região sul da Bahia”.
Paulo Camargo
No entanto, Luperi e a própria emissora dedicam-se, de maneira atenta, ao que chamaerei aqui de elementos de abordagem, transformando essa nova versão em algo mais do que um simples remake. A perspectiva de recriar uma novela, filme ou série, sem introduzir uma visão atualizada, mesmo diante de deslocamentos temporais na trama, como é o caso de Renascer, cuja segunda fase, à semelhança de Pantanal, se desenrolará nos dias atuais, me parece ser para Luperi uma empreitada sem sentido.
Nesse contexto, o aspecto mais notável e evidente deste remake é, inversamente à primeira versão, a ênfase na população negra da região sul da Bahia, situada próxima à cidade litorânea e portuária de Ilhéus, onde historicamente toda a produção de cacau era escoada. Na Renascer original, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, os personagens negros eram escassos e desempenhavam papéis secundários, a exemplo da criada Inácia, interpretada por Solange Couto na primeira fase e por Chica Xavier.
Essa figura crucial na vida do protagonista, o “coronelzinho” José Inocêncio (Humberto Carrão, nos primeiros episódios), é interpretada agora por Edvana Carvalho. Já no primeiro capítulo, quando Inocêncio se encontra entre a vida e da morte, Inácia abre, literalmente, suas gavetas, revelando sua religiosidade afro em uma sequência de beleza singular. É uma espécie de metáfora do que veremos na novela: a representatividade negra deve ir muito além de Inácia nesta nova versão de Renascer. Ela está intrinsecamente entrelaçada ao DNa da trama.
Ao transformar a protagonista Maria Santa (a revelação Duda Santos), futura esposa de José Inocêncio, em uma mulher negra retinta, assim como sua mãe Quitéria, interpretada pela extraordinária Belize Pombal, Luperi redefine de forma definitiva a genética da narrativa.
Todos os descendentes de Inocêncio (Marcos Palmeira, na segunda fase), quatro filhos, serão homens mestiços. O caçula, João Pedro, o outro protagonista da novela, será interpretado por Juan Paiva, que compartilha a tonalidade escura de pele com sua mãe e avó. O confronto entre ele e o pai, permeado pela trágica morte de Santinha durante o parto e pela disputa pelo amor de Mariana (Theresa Fonseca), ganhará matizes ainda mais profundas e complexas.
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