A nova versão de Vale Tudo, que estreou em 31 de março, opta por um caminho de contenção e reverência. Em vez de promover rupturas ou reinterpretações radicais, a adaptação escrita por Manuela Dias, bem-sucedida até o momento, parte do pressuposto de que o original – concebido por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères em 1988 – permanece vital. A escolha de preservar a espinha dorsal da obra, com atualizações pontuais, revela menos uma nostalgia conservadora e mais uma aposta na perenidade da boa dramaturgia.
Essa decisão, no entanto, pode ser lida por diferentes lentes. Por um lado, há uma valorização legítima do texto original e da força de seus conflitos morais, centrados no embate entre ética e ambição. Por outro, pode-se argumentar que a adaptação hesita em enfrentar, com maior contundência, as transformações sociais e culturais ocorridas nas últimas décadas – sobretudo em termos de linguagem, valores e representação. A fidelidade, aqui, é ao mesmo tempo gesto de respeito e limite criativo.
Falta ainda à nova versão de Vale Tudo um gesto mais ousado no tratamento de temas contemporâneos. Questões cruciais para o Brasil atual – como o racismo estrutural, a crise ambiental, a violência de Estado, os conflitos de gênero e as novas dinâmicas do poder econômico – ainda surgem de forma periférica ou diluída. Ao optar por preservar a moldura original quase intacta, a novela por vezes parece hesitar diante das urgências do presente, perdendo a chance de tensionar com mais vigor o mundo em que se insere.
O confronto entre Raquel e Maria de Fátima permanece como eixo estrutural. Taís Araújo oferece uma Raquel de grande consistência cênica: íntegra sem ser rígida, forte sem perder a ternura. Sua performance, marcada por economia expressiva e precisão técnica, sustenta o centro moral da narrativa. Sua Raquel é bem mais potente do que a de Regina Duarte, que se perdia no histrionismo. Já Bella Campos, embora ainda em processo de apropriação plena do papel, demonstra compreender a complexidade de Maria de Fátima, figura ambígua que exige nuances cada vez mais finas para além da vilania caricata. Não é, de forma alguma, uma cópia da composição de Glória Pires.
Falta à nova versão de Vale Tudo, contudo, um gesto mais ousado no tratamento de temas contemporâneos. Questões cruciais para o Brasil atual ainda surgem de forma periférica ou diluída.
Cauã Reymond, ao assumir o papel de César Ribeiro, confirma a segurança de um ator acostumado ao tipo sedutor e dúbio. Seu trabalho é eficiente, ainda que previsível. Já Paolla Oliveira, como Heleninha, oferece um dos retratos mais interessantes nesta primeira semana: sem apelar para a fragilidade estereotipada, constrói uma personagem humana, atravessada por dores reais e uma energia vital que a impede de ser reduzida a vítima.
Pedro Waddington, como Thiago, entrega uma atuação ainda incipiente. Sua presença cumpre função dramática, mas carece, até aqui, de camadas que deem maior densidade ao personagem. O mesmo não se pode dizer de Alexandre Nero, que impõe com naturalidade a autoridade cínica de Marco Aurélio, antagonista carismático e atualizável na figura do empresário inescrupuloso. A dinâmica com Lobianco (Freitas) confere ritmo e ironia a uma narrativa que, por vezes, flerta com a solenidade.
O núcleo mais leve, encabeçado por Karine Telles, Matheus Nachtergaele e Belize Pombal, escapa com inteligência da armadilha do “alívio cômico”. Sua função, mais simbólica que escapista, é humanizar a trama com afeto e humor sutil, em contraste com a aspereza moral de outros personagens.
‘Vale Tudo’: linguagem clássica
A direção aposta em sobriedade. A câmera observa, raramente interfere. A fotografia trabalha com paletas que reforçam a dimensão simbólica das personagens – quentes para Raquel, frias para Maria de Fátima –, mas evita o excesso ilustrativo. Há um compromisso claro com a linguagem clássica, e esse compromisso, embora possa parecer conservador, dialoga com a ideia de que a modernidade pode também residir na contenção.
O romance entre os personagens de Alice Wegmann e Humberto Carrão desenha-se com realismo e delicadeza, sem pressa nem arroubos melodramáticos, sugerindo uma afetividade que escapa aos modelos tradicionais do gênero.
Nem tudo, contudo, escapa à fricção entre passado e presente. A cena do incêndio simulado por Maria de Fátima, plausível em 1988, torna-se frágil no mundo atual, hiperconectado e vigiado. Essa anacronia sugere um desafio intrínseco ao projeto: como honrar um cânone sem torná-lo refém de sua época?
Apesar das reservas, o saldo é positivo. A adaptação de Vale Tudo emerge como um exercício de escuta – ao texto original, aos anseios de um público em mutação e às complexidades do Brasil contemporâneo. Não é uma releitura transformadora, mas tampouco se contenta em ser peça de museu. Em tempos de relativização moral, a pergunta que ecoa – “Vale a pena ser honesto?” — permanece como um espelho incômodo. E talvez essa permanência, mais do que qualquer revolução estética, seja seu maior trunfo.
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