Em pleno Dia da Consciência Negra, o país acordou atormentado por uma imagem de violência brutal: o assassinato de João Alberto Silveira Freitas em um supermercado da rede Carrefour, em um bairro periférico de Porto Alegre. João foi espancado por seguranças terceirizados pelo mercado e morreu provavelmente por asfixia.
Assassinatos de pessoas negras são comuns no Brasil. Esta morte, especificamente, chega até nós e repercute principalmente por uma razão: há uma imagem de contravigilância, feita por uma testemunha, que registra o teor da barbárie. A imagem, que é fortíssima e tem sido reproduzida constantemente nas redes sociais, é tão crua que causa até estranhamento que ela que seja exibida nos telejornais, sem apagamentos ou minimização dos seus impactos. Nela vemos um homem que apanha, dominado por dois seguranças, que grita por socorro, agoniza em nossa frente, é atendido por paramédicos que não obtêm sem sucesso na reanimação do sujeito. Vemos sangue espalhado pelo chão. Assistimos a uma pessoa que dá seus últimos suspiros de vida, bem em frente a uma câmera de celular.
Prestando mais atenção, há outros elementos tangenciais que tornam as imagens muito impactantes. Há clientes que passam e param para ver, provavelmente sem saber o que fazer. Logo mais, há entregadores carregando suas sacolas nas costas e outros funcionários (que assim identificamos por causa de suas roupas) igualmente perdidos. Mas há uma pessoa que chama mais atenção: uma mulher que também filma a cena, muito de perto, provavelmente para gerar um contraregistro de defesa do mercado. Em seguida, ela faz uma espécie de ameaça à pessoa responsável pelo vídeo a que estamos assistindo. Aparentemente, é uma funcionária que defende a empresa, ao invés de defender uma pessoa que sofre.
Ao longo desta coluna Canal Zero, muitos textos analisaram os impactos trazidos ao jornalismo televisivo pelo aumento das câmeras amadoras e a captura feita pelas emissoras destes registros gerados pelas pessoas comuns. Talvez uma das consequências disso seja justamente um certo “anestesiamento” da força das imagens, pois passamos a ter acesso cotidiano a cenas cada vez mais brutais, horrendas. O assassinato do homem no Carrefour, no entanto, talvez atinja um outro limiar: o que vemos aqui é tão bárbaro que transcende a nossa própria insensibilidade. De fato, por meio de uma imagem de celular, todos nos tornamos testemunhas do assassinato de um homem negro. Vale lembrar que tantos morrem todos os dias, mas poucos têm suas mortes gravadas com tanta nitidez.
Aos telejornais, coube tentar significar uma imagem tão chocante. O Jornal Nacional reservou 22 minutos à cobertura, incluindo a exibição do vídeo e uma análise de sua repercussão. No que diz respeito ao vídeo, na reportagem que abre o jornal, vale notar as estratégias usadas. As imagens da morte são repetidas em uma espécie de looping: o espancamento é exibido pelo menos cinco vezes. Em cima, em voz em off, o repórter Jonas Campos tenta organizar em palavras o indizível.
Ao trazer igualdade entre a morte de um homem e a “morte” das vidraças do mercado, os telejornais causam o mesmo erro dos que tentam substituir o lema do “Vidas negras importam pelo discurso do “Somos todos iguais”.
A cobertura do Jornal Nacional segue dando sequência ao que entendo como os princípios do bom jornalismo. Busca as fontes oficiais, ou seja, as autoridades responsáveis pela tragédia, para que se pronunciem. Falam à televisão o governador do estado, Eduardo Leite; a rede de supermercados, que só emite uma nota, sem porta-voz; e uma delegada, Roberta Bertoldo, que precisa emitir um pronunciamento respondendo se este trata de um crime de racismo (ela se esquiva de uma resposta definitiva, mas diz que não há indícios). Por fim, uma série de reprodução de tweets e vídeos amadores com as já famigeradas notas de repúdio (cuja função, feliz ou infelizmente, já está bem esvaziada).
Mas o erro crucial desta cobertura, como já apontado por muitas pessoas, não está nas imagens, mas sim nas palavras. Logo na abertura do Jornal Nacional, o apresentador significa a última etapa dessa cobertura, dizendo que “vândalos” protestaram quebrando unidades do Carrefour. A palavra retorna no final, em uma reportagem que amarra os protestos e a revolta à ideia da violência – colocando, portanto, morte e protesto em um grau de equivalência.
Se, como sabemos, a linguagem nunca é neutra, vale lembrar que o Jornal Nacional é sim responsável pelos efeitos das palavras que escolhe. Ao trazer igualdade entre a morte de um homem e a “morte” das vidraças do mercado, os telejornais causam o mesmo erro dos que tentam substituir o lema do “Vidas negras importam pelo discurso do “Somos todos iguais”: ignoram que, sim, em um país racista, não somos todos iguais, e afirma o contrário só ajuda a perpetuar as desigualdades.
A ideia da imparcialidade jornalística, de fato, se enterra quando se esquece que tudo no jornalismo é escolha e consequência – inclusive, não se posicionar-se quanto aos problemas sociais. Ao chamar protestantes de “vândalos”, o Jornal Nacional acaba optando por posicionar-se de forma velada e minimizar a revolta daqueles que têm seus direitos violados todos os dias.