Já é chover no molhado dizer que a pauta do feminismo – ou seja, a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres – é um dos temas da vez. Como não é exatamente nova, podemos até dizer que essa é uma discussão já razoavelmente assentada na sociedade e, por consequência, na televisão. Conforme já comentei aqui, o debate já está tão avançado que inclusive adentrou os programas bem convencionais sobre a beleza feminina.
Se essa discussão já meio que se difundiu na televisão, há alguns territórios, por outro lado, que configuram como espaços exclusivos do universo masculino, como os incontáveis programas de futebol. Ainda que seja fato que os personagens que adentram nestes shows não são apenas homens (seja na produção, seja na audiência), é inegável que os infindáveis programas esportivos – sobretudo, aqueles que servem para comentar sobre futebol – são locais imaginados para o cultivo de uma masculinidade tida como padrão. São espaços em que os homens, especialmente, dividem elementos que os conectam, tanto na emoção de pertencer ao mesmo time, quanto na descontração obtida pela piada, pelo meme, pela sensação de estar por dentro de um mesmo assunto, por mais especulativas que sejam as tais “informações” compartilhadas.
Que fique claro: não há problema algum em haver um território no qual as lógicas masculinas se introjetam de forma mais profunda (alguém poderia dizer que, do outro lado, há também os programas mais relacionados às mulheres, como os de moda, de beleza, os de variedades como Mais Você, etc). Mas destaco que, como tudo o mais na televisão, tais programas acabam refletindo também o “mundo lá fora”. Por isso mesmo, alguns programas esportivos, por seu funcionamento bem masculino, acabam desnudando certas questões que nos mostram que, por vezes, o machismo segue bem assentado neste universo.
Trago aqui o exemplo ocorrido essa semana durante o programa Os Donos da Bola, um formato de programa esportivo da Band replicado em várias “praças” da emissora. O caso aconteceu no programa produzido pela TV Goiânia, afiliada da Band em Goiás. A produção convidou uma moça chamada Karol Barbosa, laureada com um título de beleza – a Musa Esmeraldina 2018, do Goiás Esporte Clube – para participar do programa. Durante o episódio, a tela, dividida ao meio, focava no seu rosto e apresentava uma pergunta, que era lida pelo apresentador no palco.
Talvez o mais chocante tenha sido que, à primeira vista, muitos devem ter achado as piadas engraçadas ou mesmo normais – já que aquele seria um espaço de homens e, por isso, o constrangimento a mulheres (ainda mais às que se denominam musas!) parece algo da esfera do aceitável.
Assim, a moça era “metralhada” por perguntas que eram, na verdade, piadas de duplo sentido, todas de cunho sexual. Coisas como: “em um clássico contra o Vila, se o juiz põe pra fora, você mete a boca?” ou “para uma musa não sofrer dores localizadas, é importante o médico colocar compressa?”. A graça da piada estaria justamente no constrangimento causado pelo chiste e pela cara da moça ao tentar escapar da saia justa. Um humor nada sofisticado, mas tipicamente masculino (esse tipo de piada, que tenta fazer que o outro “caia” em uma construção de duplo sentido, é chamado de “punha” em algumas regiões).
A brincadeira do “Desafio das Musas” gerou uma péssima repercussão. O resultado, por fim, foi o cancelamento (numa iniciativa da própria Band) do programa Os Donos da Bola em Goiás, e uma nota de repúdio do time que Karol Barbosa representa em relação ao caso. Colocada sob constrangimento desnecessário, até é possível dizer que a moça se saiu razoavelmente bem – no sentido de que captou as mensagens maliciosas e desviou dos “tiros” emitidos pelas piadas de mau gosto.
Não obstante, talvez o mais chocante tenha sido que, à primeira vista, muitos devem ter achado as piadas engraçadas ou mesmo normais – já que, como afirmei neste texto, aquele seria um espaço de homens e, por isso, o constrangimento a mulheres (ainda mais às que se denominam musas!) parece algo da esfera do aceitável. Nesse sentido, a TV funcionou como uma mera reprodutora de uma lógica que existe na chamada vida real. E talvez seja isso o que deva nos escandalizar.
Mais do que celebrar que houve uma condenação imediata do caso (a saída do programa Os Donos da Bola do ar), creio ser preciso uma análise mais aprofundada, mesmo uma reflexão pessoal, sobre como, por vezes, situações semelhantes se repetem em nossas vidas, fora da TV – que é, como disse já nesta coluna, apenas um espelho da realidade.
Lembrou-me de um caso recente, quando, em uma palestra, o orador lamentou não ser mulher pois aí teria a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Levou imediatamente um coro de vaias femininas. Pois bem: conscientemente, ninguém é machista, sexista, racista, etc. Às vezes o desrespeito surge travestido de elogio – ou mesmo de uma piada sexual de duplo sentido que não visava nada além do que fazer rir.