É justo dizer que o Brasil consolidou, ao longo das últimas décadas, uma sólida tradição no humor. Nossos maiores humoristas escreveram uma história que ajuda, em alguma medida, a explicar o Brasil de sua época – basta observar o quanto os anos da ditadura foram descritos e documentados de forma paradoxalmente leve em jornais satíricos como o Pasquim.
Mas nossos grandes momentos do humor nem sempre ocorreram a partir de textos políticos, de esperada densidade. Por vezes, eles se deram por meio de narrativas marcadas pelo nonsense e pela graça quase inexplicável típica dos sitcoms, as chamadas comédias de costumes, que nos entregam uma espécie de crônica engraçada sobre o cotidiano. A televisão, desse modo, registra algumas de nossas memórias mais afetuosas e divertidas – e parte dela passa por um programa de sucesso estrondoso chamado Os Normais.
Veiculado pela TV Globo entre os anos de 2001 e 2003, o seriado Os Normais continua hilário 20 anos depois, comprovando a qualidade algo atemporal do roteiro escrito pela dupla Fernanda Young e Alexandre Machado (responsáveis também pelo texto de outras séries da emissora, como Os Aspones, Minha Nada Mole Vida e A Comédia da Vida Privada). O tom pouco datado de Os Normais se assemelha ao que acontece em Seinfeld, que talvez seja o maior de todos os sitcoms, em quem Os Normais certamente se inspira e presta reverência em vários dos seus episódios. O slogan de Seinfeld (uma comédia sobre nada) cairia perfeitamente bem a Os Normais – ainda que, no caso da série brasileira, esse nada se centralize num comentário mordaz sobre os relacionamentos, especialmente naquilo que eles têm de mais medíocre (e mesmo escatológico) e menos romântico.
Os episódios de ‘Os Normais’ transcorrem a partir dos episódios mais banais de suas vidas, que normalmente envolvem algum passeio furado, alguma frustração sexual ou a entrada em alguma confusão.
Ainda que seja difícil imaginar algum brasileiro que nunca tenha visto um episódio, vale aqui rememorar: Os Normais gira em torno de um casal de classe média, Rui e Vanilce (ou simplesmente Vani), interpretados com maestria pelos comediantes Luiz Fernando Guimarães e Fernanda Torres.
Ele, um botafoguense algo mulherengo sempre em busca de formas de levar alguma vantagem, especialmente sobre a noiva; ela, uma vendedora de loja meio neurótica, frequentemente estressada com alguma coisa, e quase sempre esperando por um casamento que nunca se concretizava.
Absolutamente mundanos, mal humorados, um tanto imorais, com preocupações bastante fúteis – por isso mesmo, perfeitamente normais – Rui e Vani faziam um comentário mordaz sobre a nossa tacanhice. Os Normais é uma espécie de celebração das nossas inevitáveis mesquinhezas, daquilo que temos de mais ordinário – como, por exemplo, a implicância sobre o método como o outro corta o queijo e como ele se ensaboa durante o banho. Talvez seja exatamente por isso que conquistou uma forte audiência pelo Brasil inteiro, tornando-se um programa cult, uma obra para ser vista e revista mesmo tantos anos depois.
Os episódios transcorriam a partir dos elementos mais banais de suas vidas (em boa parte deles, Vani e Rui estão discutindo de roupas íntimas no apartamento; o banheiro da casa de Rui é também um dos cenários mais recorrentes), normalmente envolvendo algum passeio furado, alguma frustração sexual ou a entrada em alguma confusão (como brigas com outros casais, climões criados em festas alheias, implicâncias com alguma coisa que o outro faz).
No primeiro capítulo, este tom já é estabelecido: por uma série de mal-entendidos em um restaurante, Rui e Vani entram acidentalmente em uma suruba com um casal aleatório. Tudo, obviamente, muito normal – embora o programa esteja sempre provando que, olhando bem de perto, todo sujeito é meio esquisito. Estar num relacionamento só ajuda a nos confrontar com aquilo que temos de mais ridículo.
Tudo isto poderia soar repetitivo ou clichê – afinal, somos já experts em sitcoms sobre a banalidade cotidiana, ao menos desde Friends. Mas a cereja do bolo de Os Normais estava na sintonia entre os dois comediantes, de talento irrefutável. Juntos, eles concretizaram um espetáculo de um humor algo físico, beirando o pastelão, paradoxalmente acessível e inteligente (vale lembrar, por exemplo, que Rui e Vani não tinham bordões, aquelas frases prontas repetidas sem parar em muitas comédias).
Em alguns episódios, Vani enfrenta problemas como uma tintura de cabelo que deu errado ou Rui passa por algum constrangimento intestinal. É justo dizer que Os Normais não teria sido bem-sucedido se não fosse pela disposição de Luiz Fernando Guimarães e Fernanda Torres em entregarem-se aos seus papéis para além de suas vaidades.

Outro elemento marcante de Os Normais era o uso, desde o primeiro episódio, de um recurso metalinguístico em que Vani e Rui falam diretamente com a câmera, numa espécie de monólogo/ diálogo com o espectador. A quebra da chamada quarta parede (ou seja, a derrubada do limite com o público, fazendo com que os atores interajam com a plateia) dava margem para que a dupla tivesse espaço para proferir seus raciocínios mais esdrúxulos. Era a oportunidade para que o texto de Fernanda Young e Alexandre Machado brilhasse. Ao adentrar nos momentos mais íntimos de Rui e Vani, esta estratégia dava chance para que eles expusessem ao público seus pensamentos mais ridículos (e, claro, engraçadíssimos).
Mesmo 20 anos depois de sua estreia, com um texto que permanece jovem, Os Normais segue um marco na televisão brasileira e continua arrancando risadas entre os que conseguem se identificar com alguma das situações abordadas por um dos casais mais atrapalhados do país – ou seja, praticamente todo mundo que consegue rir de si mesmo.
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