É raro que uma banda demore mais de três décadas para pisar pela primeira vez no Brasil. Mas mais raro ainda é que essa chegada soe tão coerente com sua própria história como aconteceu com o Tindersticks. Formado em Nottingham nos anos 1990, o grupo britânico cultiva, desde sempre, uma relação peculiar com o mundo: discreta, oblíqua, sem pressa ou imposição.
E foi exatamente essa atmosfera que tomou conta do Auditório Simón Bolívar, em São Paulo, onde a banda se apresentou pela primeira vez no país como parte de uma turnê sul-americana que também passou por Santiago, no Chile — e que teria dado o ar da graça em Buenos Aires, não fosse o cancelamento da data argentina em virtude de problemas com o voo.

Por mais que o Tindersticks jamais tenha se transformado em um nome facilmente reconhecível pelo grande público — especialmente no Reino Unido, onde surgiu —, há algo de profundamente inabalável em sua trajetória. A banda liderada por Stuart Staples não busca o brilho do sucesso popular. Ela se move em outra direção, uma que, ao que tudo indica, segue conduzida pelo sussurro melódico da integridade artística.
Diante de um público devotado, que esperou décadas por esse momento, o Tindersticks ofereceu uma noite em que a contenção era sinônimo de grandeza. Nada de firulas visuais ou discursos inflamados. Apenas luzes baixas, músicos sentados (na maior parte do tempo), e uma entrega quase litúrgica à música. O vocalista Stuart Staples, com seu terno desalinhado, bigode pendente e aura de camponês europeu pós-industrial, conduziu o espetáculo com uma intensidade silenciosa, evocando a figura de um pregador laico cuja fé é a canção.
Uma narrativa em 20 canções
O setlist, que privilegiou o repertório recente da banda, foi escolhido com precisão narrativa. Começando com “How He Entered”, a noite seguiu em um crescendo emocional sutil, com momentos como “A Night So Still” e “Trees Fall” evidenciando o refinamento dos arranjos e a precisão instrumental da banda. Dave Boulter, nos teclados, criou atmosferas hipnóticas com timbres sessentistas; Neil Fraser, na guitarra, foi puro subtexto melódico; Dan McKinna, no baixo e vocais de apoio, costurou tudo com elegância. Já Earl Harvin, na bateria, mostrou que a delicadeza também pode ser uma demonstração de força.
Foi com “The Bough Bends” que o clima da noite atingiu um primeiro ponto alto. A construção em camadas e a inesperada distorção de guitarra criaram um momento de imersão total, quase como se a banda abrisse uma fenda sensorial no centro do palco. O público respondeu com reverência. Nada de gritos ou celulares em riste: a reação dominante era o silêncio atento, a respiração suspensa. Em “Always a Stranger”, uma das mais belas faixas do novo álbum Soft Tissue, era possível sentir no ar uma espécie de comunhão coletiva — a melodia guiada pelo teclado, o violão discreto, os vocais dobrados entre Stuart e Dan, tudo levava a um estado de escuta quase meditativa.
Mais do que um show, a estreia do Tindersticks em solo brasileiro foi uma celebração da música como arte da escuta.
Na reta final, “Turned My Back” e “Don’t Walk, Run” prepararam o terreno para a chegada triunfal de “New World” e “Soon to Be April” — duas músicas que, em tempos de crise climática, guerras e dissolução dos sentidos, soam como pequenos refúgios líricos. O bis, aguardado com ansiedade comedida, trouxe “Stars at Noon”, “Show Me Everything” e a adorada “Tiny Tears”, recebida com uma emoção menos contida do que em outros instantes da apresentação.
O último momento da noite veio com “For the Beauty”, iniciada por uma introdução fantasmagórica ao piano, executada por McKinna. Um encerramento coerente com a lógica do Tindersticks: terminar sem estardalhaço, mas com intensidade. Como uma carta escrita à mão deixada em cima de uma mesa ao amanhecer.
Mais do que um show, a estreia do Tindersticks em solo brasileiro foi uma celebração da música como arte da escuta. Em tempos saturados por estímulos e velocidade, sua proposta estética — feita de pausas, timbres cálidos e atmosferas densas — surge quase como um gesto político. E se há algo de religioso em sua performance, não é pela grandiosidade, mas pela fé inabalável de que a beleza ainda pode ser um valor compartilhado.
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