Talvez Drauzio Varella seja o médico mais conhecido do Brasil. Sua presença nas mídias é, há uns bons anos, bastante marcante. Embora tenha se tornado muito popular desde a publicação do best-seller Estação Carandiru, em 1999, no qual conta sobre seu trabalho dentro do famoso presídio, foi na televisão que consolidou, finalmente, a sua fama nacional.
Se na área médica ele é respeitado por estudos voltados à compreensão do câncer e da AIDS, na TV, ele se tornou reconhecido por fazer, na Rede Globo, um importante trabalho de democratizar certos temas relacionados à medicina perante a população.
Falar sobre saúde para uma audiência massiva, no entanto, não é tarefa fácil, e requer uma responsabilidade gigantesca. Qualquer coisa que se diga pode gerar uma repercussão enorme e afetar a vida de uma grande quantidade de pessoas. É comum, por exemplo, que episódios do Globo Repórter que sugerem mudanças na alimentação gerem uma espécie de corrida às lojas nos dias seguintes. Reportagens que falam sobre remédios e soluções milagrosas podem gerar expectativas irreais em pessoas com graves problemas de saúde.
Sob este aspecto, pontuo aqui que há uma peculiaridade na atuação do doutor Drauzio Varella na mídia: o fato de que, embora seja médico, ele tenha uma atuação enquanto comunicador, e não como uma fonte especializada que é frequentemente ouvida por jornalistas. Como o médico tem muito carisma, além de carregar uma fala bastante didática e acessível, Varella consolidou para ele um papel particular na TV: atua como um jornalista, embora não o seja. Por outro lado, seu discurso é sempre assertivo e muito direto acerca dos assuntos que aborda (os jornalistas, entretanto, precisam manter uma certa postura de isenção, e deixam o tom declaratório apenas na voz das fontes que consultam).
É esse discurso incisivo que o doutor Drauzio empregou, por exemplo, quando condenou o burburinho em torno da fosfoetanolamina, remédio que supostamente seria uma “pílula do câncer” e que gerou muita polêmica em torno de sua efetividade (saiba mais sobre o caso aqui).
Recentemente, estreou no Fantástico o quadro “Prisão química”, uma série de reportagens encabeçadas por Drauzio Varella, tratando de um tema espinhoso: a dependência química. Nessa série (veja a primeira reportagem aqui), Drauzio faz uma dobradinha também com outro profissional de outra área que também consolidou uma carreira nas mídias – o ex-jogador de futebol Walter Casagrande, que há alguns anos resolveu tornar público o seu sério problema de dependência da cocaína.
Há, no projeto, uma boa sacada, que é aproximar duas pessoas cuja marca de atuação está justamente na franqueza e na clareza no tratamento dos temas que abordam. Aqui, eles são trazidos para falar de um assunto que, essencialmente, é envolvido em nebulosidade, uma vez que o debate sobre drogas costuma se atrelar a agendas políticas, morais e religiosas.
A primeira contribuição da série Prisão Química, do ‘Fantástico’, talvez seja a coragem por falar do tema de forma transparente, sem papas na língua.
Por isso mesmo, a primeira contribuição da série do Fantástico talvez seja a coragem em falar do tema de forma transparente, sem papas na língua. Drauzio Varella, logo na abertura do quadro, faz o recorte preciso: as reportagens não tratarão de discutir políticas sobre drogas nem a questão da descriminalização, mas sim pretendem tentar levar à grande audiência televisiva da Globo o conhecimento sobre o que significa ser dependente químico. Casagrande, assim, é responsável por dar “corpo” à experiência com as drogas a partir da sua. E desde o começo da entrevista, o tom da franqueza ficou nítido: ao ouvir do doutor Drauzio a pergunta sobre como foi a sensação de ter usado cocaína pela primeira vez, Casagrande prontamente respondeu: “maravilhoso”.
As entrevistas – a conversa entre Varella e Casagrande é entrecortada pelas falas de pessoas comuns, outros dependentes químicos, que narram sua experiência – são marcadas justamente pela crueza trazida pelo formato do testemunho. Casagrande expressa, com a autenticidade que o caracteriza, os detalhes de uma tragédia particular daquele que busca nas drogas um alívio para os seus problemas, quase sempre (mas não sempre) com resultados catastróficos. Essa louvável franqueza, no entanto, destoa um pouco de um tom algo exagerado que é usado em alguns momentos das reportagens – como nas imagens dramáticas, enfatizando o contraste entre claro e escuro, na qual Casagrande é enfocado em certos momentos.
É aí – nesse quase sempre – que talvez esteja a qualidade do quadro: a mediação sóbria de Drauzio Varella, com todo o seu didatismo, esclarece as características definidoras de uma dependência química, costurando, nas entrelinhas, que nem todo usuário de drogas é dependente químico. Uma abordagem madura e mesmo ousada para um programa televisivo, de grande audiência, como é o Fantástico. É de esperar, portanto, que os próximos episódios da série mantenham essa pluralidade na discussão sobre o tema – seria interessante, por exemplo, se em algum momento essa problemática múltipla sobre o uso “recreativo” de drogas apareça no programa.