Em 2009, foi ao ar pela Logo TV um programa de baixo orçamento, capitaneado pela drag queen RuPaul Charles, já bem conhecida nos circuitos indie. O reality show RuPaul’s Drag Race, a icônica “corrida” das drags, lançava-se ao mundo de maneira modesta, sem ter total noção do impacto que causaria na cultura mundial.
De certa forma, este reality show é o grande responsável por popularizar a arte drag em todo canto do mundo. Originalmente, o termo drag queen se refere a artistas do sexo masculino que usam roupas e maquiagens femininas exageradas para fazer uma performance com fins específicos (dramáticos, cômicos, de dança, etc.). Mas, com o tempo, o conceito se alargou para um universo inteiro: drag passou a dizer respeito à celebração de toda a cultura queer em todas as especificidades e nuances.
Se RPDR tem essa participação fortíssima na popularização do termo, também dá para dizer que a atração também padronizou a arte nas formas que ela se espalhou pelos países. E é impossível assistir a Caravana das Drags, o novo programa da Prime Video, sem pensar no programa do RuPaul (que atualmente está na décima quinta temporada).
As razões são bastante óbvias: todo o formato de Caravana das Drags, que tem dois apresentadores (a drag Ikaro Kadoshi, que antes esteve à frente do Drag Me as a Queen, e Xuxa, que dispensa qualquer apresentação), remete ao programa americano. As participantes são dez artistas, que passam por duas competições por programa (uma menor, o “close”, e uma maior). Após disputar as provas, uma drag é eliminada por episódio.
As semelhanças são evidentes, o que causa um questionamento sobre se RPDR engessou a abordagem deste gênero artístico. Antes do fenômeno RuPaul, havia um espaço muito restrito à arte drag no Brasil. O mais evidente são os shows de transformistas no antigo Programa Silvio Santos, que circunscreviam as performers a um universo mais noturno, exclusivamente reservado aos adultos e a espaços proibidos.
É justamente quando a brasilidade vem à tona que os momentos mais preciosos do reality show se destacam.
Por isso, é importante destacar que Caravana das Drags pega carona, de forma muito positiva, no teor de celebração e acolhimento que o universo drag assumiu e que foi abertamente abraçado por Xuxa. Ela, aliás, não está ali à toa, pois se tornou um ícone absoluto – ainda que provavelmente de maneira involuntária na época – de milhares de crianças queer que se encantavam com suas montações em programas infantis.
Ikaro e Xuxa deixam claro que estão ali juntos, de igual para igual, nesta jornada que busca evidenciar as peculiaridades do universo drag conforme ele se manifesta neste país. E o fato de que Xuxa – que é uma estrela para além dos parâmetros das celebridades nacionais – não seja tratada com excessiva reverência em Caravana das Drags já é um ótimo fator para assistir ao programa.
‘Caravana das Drags’ : caravana da brasilidade
Até o momento, a Prime Video disponibilizou três episódios aos assinantes. Mas eles já deram uma boa amostra de que este é um programa ágil, divertido e bem produzido, ainda que despretensioso (ainda bem!).
São dez participantes que são apresentadas em clipes curtos e sucintos, e que evidenciam que o fenômeno das drag queens já se sofisticou a ponto de abranger vários estilos: das engraçadas às dançarinas, das plus size às estranhas, das que se espelham em algum modelo internacional ou as que tentam retratar suas origens.
Diria que a cara de Caravana das Drags acontece justamente nos momentos em que ele se afasta do programa de RuPaul. A ideia da “caravana” é ótima: um ônibus cor de rosa que atravessa uma cidade em um estado do país, de onde surgem certos elementos que serão abordados na prova daquele episódio. Outra boa sacada: em certo momento, as meninas precisam “batizar” o veículo, e fecham no nome “Vera Busão”, homenageando Jorge Lafond.
Assim, quando chegam em Goiás, as drags precisam gravar um clipe de “queernejo” cantando como a “rainha do tomate”. Já em Minas Gerais – e, mais especificamente, em Diamantina, terra de Xica da Silva – Ikaro se une a Ronaldo Fraga para falar sobre o rococó mineiro.
Há também a boa ideia de adaptar algumas das provas, tirando o lastro do programa americano. Ao invés dos lip syncs de RuPaul, as drags brasileiras se desafiam numa modalidade de “bate cabelo”, que consiste em ficar rodando a cabeça enquanto balançam a peruca sem parar.
Salvo exceções, o cast é bem selecionado, com drags carismáticas que representam características de várias regiões do país. E é justamente quando a brasilidade vem à tona que os momentos mais preciosos do reality show se destacam. Quando Xuxa pergunta as razões dos nomes das drags, Chandelly Kidman (do Piauí) explica que seu apelido veio da sobremesa da Nestlé; Hellena Borgys (de Minas) fala que seu nome vem das novelas de Manoel Carlos que assistia com a avó, e assim por diante.
É exatamente nesse tom de “O Brasil que deu certo” que Caravana das Drags se torna delicioso e faz desejar que Ikaro e Xuxa tenham a oportunidade de nos trazer muitas outras temporadas, explorando mais cidades e estados. Que venham mais episódios.
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