Inclusivo e acolhedor, o universo das drag queens encontrou um espaço cativo na cultura popular, espaço esse construído, sobretudo, pelo estrondoso sucesso do reality show RuPaul’s Drag Race no mundo inteiro. Sendo assim, é natural que renda frutos pelos países. Um destes “descendentes” estreou recentemente no canal E!. Drag me as a queen é um reality show que promete levar o mundo drag a uma das camadas mais fiéis do seu público: as mulheres.
Nada mais justo, alguém poderia dizer, uma vez que as mulheres são a inspiração essencial das drag queens (o drag, inclusive, é uma contração para “dressed resembling a girl”, ou “vestido como uma garota”). No entanto, o mundo das drags se expandiu para muito além do feminino e passou a configurar um universo particular e com suas próprias lógicas. A julgar pelas temporadas de RPDR, poderíamos listar algumas dessas “regras”: ser drag envolve ter um glamour típico das grandes estrelas hollywoodianas, mas sempre com o toque de exagero e ousadia; ter muitos talentos para realizar todo o tipo de performance; significa ter um raciocínio rápido, como o de um comediante, e usá-lo para “destruir”, sempre com humor, seus “oponentes” (o famoso shade); significa, por fim, ter confiança o suficiente para estabelecer uma personagem bem delineada e defendê-la perante um público que estará sempre propenso a criticá-la.
Sendo assim, tudo isso é lembrado, mesmo que modestamente, em Drag me as a queen. O formato do programa pretende configurar uma espécie de competição, ainda que ela seja, no fundo, apenas uma desculpa para que as drags possam ser apresentadas ao público. A lógica é simples: uma mulher é convidada para ser transformada em drag por três drag queen profissionais. Escolhidas em uma seleção acirrada (o canal E! recebeu inscrições de mais de 130 candidatas), Ikaro Kadoshi, Penelopy Jean e Rita von Hunty são as apresentadoras e as “competidoras” que passam por pequenas provas entre si. Por exemplo: uma das etapas do programa é sugerir um “nome drag” à moça, em uma espécie de competição – que, como já dito, é apenas uma desculpa para que o “shade” possa ser praticado.
Assim, o programa tem uma certa proposta de resgate do feminino. A ideia é oferecer “conforto drag” a mulheres que precisam se reconectar com sua força interior, buscando aceitar-se – a revalorizar-se – por meio da vivência com a cultura gay. Assim, as competidoras querem, teoricamente, reativar sua autoestima após passarem por situações como divórcio, reduções de estômago, crises profissionais, problemas de saúde ou simplesmente a vontade de fazer uma homenagem às mulheres da família.
O discurso se consolida na ideia de “libertar a diva interior”, ou seja, vivenciar de forma plena o feminino – que, aqui, se limita à ideia de ser exuberante, sedutora e de uma alegria contagiante. É um pouco a ideia de deixar de ser a pessoa que sou no dia a dia, e dar-me o direito de ser quem quero ser.
O programa tem uma certa proposta de resgate do feminino. A ideia é oferecer “conforto drag” a mulheres que precisam se reconectar com sua força interior, buscando aceitar-se – a revalorizar-se – por meio da vivência com a cultura gay.
Até aqui já fica bastante claro, portanto, que as estrelas são as três drags, e não as candidatas. Como em RuPaul’s Drag Race, as personas das drags são bem delimitadas e esclarecidas a todo instante no programa. Ikaro Kadoshi é mais sensível, andrógina e tem personalidade mais retraída; Rita von Hunty, mais pin-up, é mais classuda, e sua elegância se expressa em seu estilo e em sua proclamada língua ferina (embora, ao longo dos episódios, também pareça doce e educada); já Penelopy Jean é a hipérbole, a baladação, as pistas de dança e a extroversão normalmente esperada às drags.
Todas estas características são ressaltadas constantemente em Drag me as a queen – o que acaba trazendo uma certa sensação de artificialidade, também um pouco emprestada de RPDR. Ela aparece, por exemplo, em monólogos feitos para as câmeras em que dão alfinetadas nas amigas, mas o tal shade parece meio forçado – como se fosse uma condição própria do programa de drags e não uma rivalidade autêntica. Não que isso seja exatamente um problema, mas apenas uma característica do tom over desse tipo de reality.
Curiosamente, o próprio RuPaul’s Drag Race traz em toda temporada uma prova em que as competidoras precisam transformar em drag alguém completamente alheio a esse universo, como mulheres atletas, gays na terceira idade, parentes das próprias drags e membros da própria equipe de programa. Mas sempre causa a impressão de que as transformações masculinas em drags são sempre mais impressionantes do que quando isso é feito com mulheres. Em Drag me as a queen, a sensação é um pouco próxima à que sentimos nessa prova de RPDR.
Em suma, Drag me as a queen tenta atrair as mulheres por meio de um discurso que ora beira o terapêutico (como se montar como drag fosse uma “cura” para as feridas do passado), ora resvala na autoajuda. No entanto, acaba fortalecendo a ideia de que a grande atração do mundo drag é, de fato, as drags. Se o programa se define como uma “ode às mulheres”, como declarou a apresentadora Ikaro Kadoshi, acaba criando um desejo de que as três fantásticas drags fossem mais exploradas no reality show.