Desde o dia 27 de abril de 2021, o brasileiro tem acompanhado uma espécie de “novela” bem inusitada: são as sessões da CPI da COVID-19, que investigam as omissões e as irregularidades na forma com que o governo federal lidou (e ainda lida) com a pandemia de COVID-19 no país.
Como algumas reportagens já sinalizaram, a CPI tem evidenciado um processo interessante, pois escancara nuances da midiatização da política – ou seja, o fato de que quase todos os cidadãos só conseguem acompanhar os acontecimentos políticos por meio da “tradução” feitas pelos meios de comunicação.
Mas talvez seja possível pontuar algo novo aqui: a CPI da COVID-19 tem sido levada à população não apenas pela sua transmissão oficial, na TV Senado, nem pelos chamados meios de comunicação hegemônicos, como as emissoras televisivas, jornais e suas versões em ambiente digital. Há uma cobertura diversa que se estende para além deles, inclusive a que é feita por pessoas que não são jornalistas ou profissionais de comunicação. Muitas vezes, essa cobertura tende mais para o humor do que necessariamente à informação – pelo menos em um sentido clássico.
E o que significa esse fenômeno, e será que podemos dizer que há algo que está sendo inaugurado na cultura a partir dessa cobertura? Para compreendermos isso, a reportagem da Escotilha conversa com três profissionais que abordam a CPI sob diferentes olhares: o professor Wilson Gomes, doutor em Filosofia e professor titular da UFBA, o jornalista Álvaro Borba, um dos fundadores do canal Meteoro Brasil, e Gilvan Moreira Costa Júnior, sonoplasta e estudante de Ciências Contábeis, que comanda um canal na plataforma Twitch que faz cobertura da CPI.
Afinal, para que serve uma CPI?
Os acontecimentos políticos costumam existir sob uma espécie de dualidade: enquanto boa parte deles é costurada nos bastidores, depende-se também da visibilidade dessas ações para que a população as conheça e tome parte do processo democrático.
O professor Wilson Gomes destaca que CPIs são “um daqueles raros momentos da política institucional em regimes presidencialistas em que o centro da cena é ocupado pelo parlamento e não pelo governo, em que nos níveis mais altos da esfera de visibilidade pública está a oposição e não a situação”.
Por consequência, uma das motivações para se fazer CPIs, para além dos inquéritos e da seriedade dos problemas que enfrentam, é a visibilidade que ela confere aos parlamentares envolvidos. “Esta é igualmente a razão dos temores de CPI por parte do Poder Executivo em particular, e da Situação, em geral, enquanto a Oposição tem nelas o seu momento de palco e glória. A razão disso é que CPIs respondem a (ou, às vezes, disparam) escândalos políticos e escândalos, por definição, são eventos de conhecimento público em que alguém (pessoas ou instituições) é apanhado em comportamentos inapropriados que chocam a coletividade. Escândalos, em geral, atraem uma gigantesca quantidade de atenção pública e, portanto, de cobertura jornalística, além de mobilizar um alto teor de indignação popular”.
Gomes ainda retoma a ideia americana do “frenesi alimentar” (no original, feeding frenzy), para explicar os efeitos da CPI. “É aquele momento em que animais de um mesmo bando se lançam sobre o alimento em grande confusão – do jornalismo. Mas também é o momento em que os parlamentares, que geralmente ocupam esferas secundárias de atenção da mídia, vivendo do que sobra do governo, se deslocam para o centro da visibilidade pública”.
Por essa razão de atrair os holofotes para si, uma CPI costuma ser dual para os próprios políticos. “Quando governos não estão na berlinda durante uma determinada CPI, em geral não gostam delas. A razão é que a CPI drena para ela quase toda a atenção do público e do jornalismo, ao mesmo drenando também toda a atenção e energia dos parlamentares. E até rouba energia do governo, que não só tem que dar explicações à medida que fatos vão aparecendo e acusações são formuladas, como também eventualmente precisa recrutar um time de situacionistas para enfrentar a oposição nas próprias comissões”, pontua.
Ainda que o brasileiro esteja acostumado a ver, de tempos e tempos, momentos que associem política e performance (vide, por exemplo, a votação dos deputados na decisão do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016), é possível dizer que há alguma novidade na transmissão na CPI da COVID-19? O professor enxerga que há, sim, algo de novo. “Primeiro, é uma CPI durante uma pandemia, em que uma parte considerável da população está em casa, em trabalho remoto. Digamos que há menos distrações coletivas para disputar a atenção com os principais eventos que nos chegam pelas telinhas”.
A CPI da COVID-19 tem sido levada à população não apenas pela sua transmissão oficial, na TV Senado, nem pelos chamados meios de comunicação hegemônicos, como as emissoras televisivas, jornais e suas versões em ambiente digital.
O entretenimento gerado pela CPI
Wilson Gomes observa que houve uma espécie de continuidade da CPI com o tipo de audiência que era gerado pelo BBB 21 (que acabou no dia 4 de maio). “Por umas semanas, inclusive, aparentemente a CPI ocupou o lugar do BBB na categoria ‘o que vamos ver todos juntos e comentar juntos agora?’. A coincidência temporal entre o fim de um programa e o começo de outro, fez que um recebesse a audiência do outro”, analisa.
Um fenômeno bastante interessante que tem sido gerado pela CPI da COVID-19 é o surgimento de canais que transmitem as sessões, para fins, sobretudo, de entretenimento. É o caso do canal O Sonoplasta, hospedado na Twitch (plataforma de streaming da Amazon especializada em transmissões ao vivo). Capitaneado por Gilvan Costa Júnior (o “Sonoplasta” no programa Chico Barney Urgente), o canal faz lives sobre a CPI. Júnior explica que a ideia surgiu de forma espontânea.
“Meu canal na Twitch é algo que eu já planejava fazer há um tempo para fazer uns beats e conversar com a galera, e foi feito pouco antes da CPI começar. Isso concidentemente se deu com o fim do BBB, que a maioria do público do canal, e do Brasil, já acompanhava. Um viewer me indicou fazer um react (tipo de vídeo que se baseia na exibição das reações da pessoa que faz a transmissão) da CPI e a gente acabou se encantando com o caos. Combinou com o estilo da transmissão, e com a sonoplastia de programas de auditório, como os famigerados sons do Ratinho, que costumamos utilizar durante as lives”, comenta.
Se a CPI é consumida de maneira semelhante aos dos formatos de entretenimento, é normal então que os “episódios” tenham altos e baixos – como uma novela. O professor Wilson Gomes explica: “os que registram a repercussão da CPI em mídias sociais, onde podem ser retiradas as melhores amostras da concentração da atenção coletiva, notaram, contudo, que o acompanhamento coletivo da CPI vem perdendo calor e intensidade. O que é compreensível, pois ‘os episódios’ são longos demais e nem sempre há reviravoltas ou cenas chocantes que justifiquem horas de atenção pública”.
Júnior observa essas oscilações nas suas transmissões na Twitch, e usa estratégias para lidar com isso. “A interação com o chat é o principal aspecto da transmissão, e por sermos uma live pequena, é possível conversar com todo mundo no chat sobre os acontecimentos da sessão em tempo real. A plataforma também permite alguns outros tipos de interação, como “apostas” valendo pontos do canal como “fake news envolvendo Mia Khalifa vai ser mencionada?” e outras coisas relacionadas aos acontecimentos recorrentes na CPI. Assim como todo reality, em dias com depoentes mais promissores e famosos, a audiência é maior”.
Wilson Gomes nota que essa variação no interesse público na CPI é esperada. “Eventualmente, haverá ainda picos de audiência, nos plot twists, nos comportamentos chocantes, nos atos de extrema vilania, nos bate-bocas mais vistosos e nas revelações mais bombásticas, mas a tendência natural é que as pessoas pelo menos abandonem o pay per view e passem a acompanhar principalmente pelos resumos dos jornais da noite ou pelos highlights das mídias sociais”.
A experimentação de novos formatos jornalísticos
Outro aspecto que pode ser observado na CPI é que ela tem estimulado o uso de diferentes formatos de cobertura, que operam por estratégias distintas em relação às usadas pelos veículos jornalísticos tradicionais.
O Meteoro Brasil, canal criado originalmente no YouTube pelos jornalistas Álvaro Borba e Ana Lesnovski, é um dos que têm experimentado formas para relatar jornalisticamente a CPI. O canal tem transmitido as sessões e, diariamente, Álvaro produz um vídeo que faz uma espécie de síntese do dia, a partir da edição de momentos específicos e de análise jornalística.
Álvaro Borba explica que essa cobertura surgiu de forma natural. “O projeto meio que tem vida própria e escolhe seus caminhos por conta. Quando o primeiro depoimento foi tomado, nós sabíamos que aquela era a notícia do dia. Sabíamos que precisaríamos fazer um vídeo a respeito. O problema é que demoraria muito; umas seis, sete ou oito horas. Só depois desse tempo é que eu poderia escrever, gravar e editar. Imediatamente improvisamos uma live para retransmitir a TV Senado acrescentando comentários e outros materiais em vídeo”.
A cobertura do Meteoro iniciou no dia posterior ao depoimento de Henrique Mandetta, ex-Ministro da Saúde. “Fizemos no dia seguinte, na semana seguinte e assim por diante. Mais uma vez, a coisa tomou forma por conta própria. A gente foi experimentando aqui e ali, acertando, errando e aparando arestas”.
Borba conta que tinha uma experiência prévia com esse tipo de cobertura ao vivo, mas ela vinha de uma era analógica, em que o retorno da audiência era mais complexo. “Não tinha resposta imediata do público, então tudo era feito no escuro. A única bússola sobre a reação da audiência viria numa pesquisa um mês depois. Com o chat rolando no YouTube fica tudo muito diferente, é outra experiência. Tive que reaprender muita coisa”.
Álvaro Borba teve um papel importante na exploração de formatos mais acessíveis para comunicar a política à população, uma vez que foi o diretor da comunicação digital da Prefeitura de Curitiba durante a gestão de Gustavo Fruet (2013-2016), quando utilizou-se uma linguagem informal da “Prefs de Curitiba”, que passou a influenciar a comunicação da política em outros lugares.
O jornalista nota que há um esforço coletivo nos espaços de jornalismo independente e mesmo nas mídias como um todo para falar sobre a CPI de uma maneira mais aprazível ao público. “Eu realmente me sinto seguro para dizer que a gente tá vendo uma coisa fora do normal. Eu estou bem familiarizado com cobertura de CPI, o que eu ainda não tinha visto é essa cobertura sair completamente das quatro linhas do jornalismo. O que tem de conteúdo seriado não jornalístico baseado nessa CPI é fora do comum. Pensa no Marcelo Adnet transformando cada depoimento numa narração do Galvão Bueno ou no humorista Esse Menino que despontou satirizando as ofertas da Pfizer. O humor contido nesses dois exemplos consegue resumir, sintetizar e explicar coisas de maneiras que o jornalismo jamais se poderia se permitir fazer. Ajuda muito na compreensão geral dos fatos. Disso eu tenho certeza”.
E será que é possível afirmar que coberturas como essas (tanto as jornalísticas como as de entretenimento) ajudam a popularizar a política? O professor Wilson Gomes não concorda com a premissa de que isso tenha acontecido apenas agora. “Não há ‘popularização’ de processos políticos, o que há é o fato de que a atenção pública passou a se concentrar também em eventos políticos que em outras épocas eram reservados ou ficam às moscas. Sessões plenárias do parlamento, em discussões ou mesmo em votações, foram institucionalmente projetadas para serem assistidas pelo público presente (por isso, as galerias) e pela imprensa, desde a invenção das democracias representativas no século XVIII”.
O professor ainda menciona que o jornalismo, desde sempre, teve um papel fundamental na publicização da política. “A questão é que a política moderna nunca quis ou encontrou meios para que o olhar do público em geral pudesse acompanhar todos os processos e eventos, apesar do tradicional elogio à transparência pública que se lê em todos os teóricos da democracia liberal. Uma das razões pelas quais a democracia moderna tanto precisou do jornalismo consiste exatamente em que esta instituição parecia o único modo capaz de promover uma visibilidade pública alargada da política, que, de outro modo, não seria possível”.
Deste modo, os avanços tecnológicos que ajudaram a consolidar uma “internet social”, em que a conversação coletiva é a regra, também têm uma participação central nas formas pelas quais hoje se consome a política. “Agora se trata, sobretudo, de poder comentar, ler comentários, formar opiniões, falar de forma síncrona (enquanto as coisas estão acontecendo) com os senadores que estão, por sua vez, ao mesmo tempo nas sessões de tomada de depoimento e no Twitter e Instagram, interagindo com seguidores”, explica Gomes.
Neste ponto, estaria a novidade da CPI: o fato de que os usuários da internet participam ativamente dessa fala sobre política, inclusive fazendo fact checking sobre falas de senadores e depoentes, ou mesmo enviando materiais que podem ser usados por eles. Essa interação, no entanto, só é possível também por causa de mudanças nas posturas dos próprios políticos.
O professor Wilson Gomes arremata: “esse nível síncrono não ocorre apenas porque o lado da cidadania online, produzindo conteúdo sobre os eventos políticos à medida em que eles acontecem, não estivesse pronto para essa ‘parceria’ com os parlamentares. É que só agora temos um número importante de parlamentares que chegou a um alto nível de habilidade digital e acumulou um bom capital social em mídias digitais, a ponto de ser capaz de interagir também em dupla tela, um olhar na testemunha outro nos seguidores e seguidos em mídias sociais”.
Em relação ao trabalho feito pelo Meteoro Brasil e por outros canais que também fazem cobertura sobre a CPI, Álvaro Borba diz que é necessário confiar que ela ajuda a tornar o processo político mais acessível. “Eu preciso acreditar que a cobertura dessa CPI, feita desse jeito, trabalha para reverter aquele sentimento antipolítica que jogou o Brasil no abismo. Eu preciso acreditar que todas essas coisas somadas vão nos ajudar a tomar decisões menos cretinas diante das urnas num futuro próximo. No momento em que eu perder a fé nisso tudo, eu nem saio da cama”.