O SBT anunciou o encerramento do programa Casos de Família, existente na grade da emissora desde 2004. Ainda que não tenha sido o primeiro deste gênero no Brasil, Casos de Família foi certamente a mais longeva atração nacional dentro do formato “terapia na TV”, levando pessoas (quase sempre muito pobres) para expor seus problemas pessoais no palco e terem, ao fim do show, algum tipo de orientação.
Curiosamente, Casos de Família atravessou fases ao longo de suas quase duas décadas e também foi encarado de maneiras diversas pela crítica televisiva. Em 2004, quando surgiu, o programa era apresentado pela jornalista Regina Volpato, e trouxe uma espécie de inovação na TV ao dar legitimidade aos conflitos subjetivos das classes mais pobres (que geralmente eram retratadas apenas pelo escárnio dentro da TV) por meio de uma mediação empática e generosa.
Até que, em 2009, Sílvio Santos propôs uma virada de chave na atração. Christina Rocha – profissional velha conhecida da emissora, e muito lembrada por ter apresentado o jornalístico Aqui Agora – assumiu o lugar de Regina Volpato, e o programa mudou radicalmente de cara. Dos sofrimentos mediados pela jornalista e pela psicóloga Anahy D’Amico (que permaneceu durante toda a história do programa) com respeito e sobriedade, Casos de Família tornou-se uma atração mais “gritante” e performática – quem sabe até mesmo festiva. Os temas se tornaram mais engraçados e os barracos se tornaram a regra.
O que não quer dizer que Casos de Família tenha perdido a sua essência, que era o de dar cara (talvez pela primeira vez) aos sofrimentos psíquicos das classes mais pobres do país. Por mais que a atração tenha sido decodificada tantas vezes com o pior que poderia haver na TV aberta brasileira, a verdade é que esta é uma leitura superficial do que ele representou – e segue representando.
Neste texto, levantamos alguns pontos que podem ajudar a entender por que deveríamos lamentar o fim do programa, uma vez que ele não encontra semelhança com outras atrações presentes nas grades das emissoras nacionais.
‘Casos de Família’: um programa vanguardista
Pode-se dizer que Casos de Família foi um programa essencialmente inovador dentro daquilo que se propunha fazer. Mas qual era a novidade? Para entender mais sobre a atração, conversamos com o jornalista Rafael Fialho Martins, professor da Universidade Federal de Rondônia. Rafael é autor da tese de doutorado “O pessoal e o popular são políticos? Casos de Família e o debate sobre violência doméstica no talk show”.
Por mais que a atração tenha sido decodificada tantas vezes com o pior que poderia haver na TV aberta brasileira, a verdade é que esta é uma leitura superficial do que ele representou – e segue representando.
Ele pontua que a grande novidade do programa tinha a ver com a forma com que o pobre passou a ser enquadrado pelas lentes do Casos de Família. “Tinha ali um lugar em que o pobre colocava o seu desejo, no sentido freudiano, as suas aspirações, a sua vida íntima”, explica.
É óbvio que isso não quer dizer as pessoas das classes populares não aparecessem antes disso na TV – a questão aqui está no como. Afora o Casos de Família, o pobre só encontrava alguma representação nos telejornais de cunho popular. “E o telejornalismo popular representa o pobre ou como o vilão (o ladrão, o bandido que rouba e mata) ou como a vítima desse vilão e da sociedade. Já no Casos de Família, a classe popular é, obviamente, também abordada como vítima, mas guarda outras nuances: é a mulher que quer sair para ir para a festa, que quer ser amada pelo marido, que tem uma sexualidade que desvia do padrão”.
Ou seja, podemos dizer que, com o Casos de Família – especialmente na sua primeira edição, com Regina Volpato – as pessoas mais desfavorecidas na sociedade passaram a receber um outro olhar, em que seus problemas pessoais (e não apenas sociais) puderam ser legitimados. “É como se fosse um Manoel Carlos ao contrário: o programa de pobre em contraposição à novela de rico. O pobre aparecia para além da representação da pessoa que sofre. Hoje não há qualquer programa de TV que represente a classe de outras formas para além da abordagem redutora do jornalismo popular”, aponta Rafael Martins.
Os (muitos) problemas do programa
É claro que notar a construção deste espaço de representação não significa, de modo algum, que o Casos de Família não tivesse inúmeros problemas. Não dá para deixar de notar uma estereotipação e mesmo uma exploração da pessoa mais pobre, levada às telas de todo o Brasil, muitas vezes, para gerar um entretenimento vazio, espetacular – como no caso das pessoas que brigavam no palco.
Mas notar estes defeitos não apaga o que o programa tinha de interessante. Mesmo a constante suspeita de que muitos dos barracos eram falsos não é suficiente para desconstruir o ineditismo do programa. Rafael Martins explica: “o principal problema do Casos de Família era tratar pelo ângulo da subjetividade algo que é um problema social. Um caso é o da violência doméstica, que estudei em minha tese, que era tratado como problema psicológico, enquanto é de ordem social. Mas pelo menos ele mostrava que essa camada da sociedade brasileiro tem sentimentos, tem psique – e ela merece ir para a terapia, assim como os ricos”.
Na primeira fase do programa, com Regina Volpato, havia um evidente esforço de tentar promover o diálogo de uma forma que poderia ser chamada hoje como não-violenta – propondo ser mais um lugar de escuta (por parte da emissora) do que de fala (que ficava mais reservada aos participantes, por maiores que fossem as dificuldades para explicar seus sofrimentos).
“O programa mostrou que o pobre não tem só necessidades: ele tem cérebro, tem coração, tem subjetividade, tem problemas psicológicos, assim como o rico. E se ele tem necessidades, elas também são subjetivas – e isso o jornalismo comum não costuma falar”, acrescenta Martins.
O olhar sobre a diversidade de gênero
Já na segunda fase de Casos de Família, a partir de 2009, algumas pautas começaram a se repetir. Uma das principais era a tônica em temas voltados à comunidade LGBTQIA+. Daria até para dizer que, a partir daí, o programa adquiriu uma nova vida e se tornou um ícone pop, capaz de gerar incontáveis memes.
Obviamente, isto não significa que esta população não tenha sido estigmatizada muitas vezes no programa. Contudo, é possível também pontuar que o assunto foi levado para muitas casas, talvez pela primeira vez. Vale ainda lembrar que este aspecto guarda alguma continuidade com a própria história do SBT. Os mais velhos devem recordar que Sílvio Santos foi um dos primeiros apresentadores a dar espaço para shows de “transformistas”, nos anos 80 – termo que era usado para designar aquelas que chamamos atualmente de drag queens.
A questão de gênero se fortaleceu ainda mais se pensarmos no Casos de Família como um programa para o público feminino, uma vez que a atração abraçou a questão da violência contra a mulher como uma de suas causas. É bastante provável, inclusive, que centenas de mulheres tenham tido contato com a ideia de que talvez pudessem estar sendo abusadas dentro de casa por conta dos episódios do programa.
‘Casos de Família’ acabou de vez?
Falar sobre a grade do SBT é sempre apostar na imprevisibilidade, uma vez que as coisas mudam na emissora sem qualquer aviso (e talvez planejamento). Rafael Martins lembra que o programa já terminou 3 vezes, e retornou. Mas agora haveria mais indícios sobre o seu fim, que envolvem justamente a saída gradativa de Sílvio Santos da emissora e a passagem do “poder” para as suas filhas. A audiência ruim do programa também pode sinalizar que não há volta.
Martins explica por que, na sua visão, o fim do Casos de Família é uma perda para a população. “Pararemos de ver, na TV aberta, essa abordagem do pobre como uma pessoa dotada de subjetividade e de sofrimento. O Casos de Família era o lugar em que as pessoas iam se tratar no psicólogo. Nos outros programas, é o lugar em que as pessoas vão pedir doações, uma ajuda do ponto de vista material. Agora restou só esse último lugar”.
Com o fim do programa, só resta à população mais pobre do país uma perspectiva essencialmente desumanizadora – uma vez que ou aparece como estatística (em dados sobre a pobreza) ou pelo enquadramento do jornalismo policialesco. Dá para pontuar, então, que ao longo de 18 anos, Regina Volpato, Christina Rocha e Anahy D’Amico desempenharam um importante papel a quem não tem qualquer acesso à discussão sobre saúde mental.
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