Vigorosa série recentemente lançada no Prime Vídeo pela produtora O2 (de Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus), Cangaço Novo emerge como uma das produções mais significativas do cenário audiovisual brasileiro em 2023. Criada por Mariana Bardan e Eduardo Melo, se passa na fictícia cidade de Cratará, localizada no sertão do Ceará, região que enfrenta desafios em muitos âmbitos, incluindo ausência do Estado, deficiência educacional, falta de água e oportunidades profissionais.
Cratará, embora não seja uma localidade que exista de fato no mapa do Brasil, simboliza de maneira exemplar a realidade. Uma mesma família, os Maleiros, cuja influência se estende tanto até Fortaleza, capital cearense, quanto a Brasília, exerce controle político na região há gerações. Essas dinâmicas de poder e econômicas, conforme foi abordado por Sérgio Buarque de Hollanda em sua obra clássica Raízes do Brasil, perpetuam-se por meio de redes de compadrio (e favorecimentos), desde o Brasil Colônia.
O que confere um toque intrigante a essa série, contudo, é a presença, na localidade, de uma quadrilha inserida no que o historiador britânico Eric Hobsbawn denomina, em seu livro Bandidos, de “banditismo social”, fazendo alusão ao cangaço que marcou o início do século passado. Essa gangue é especializada em assaltos a bancos e propriedades nas cidades vizinhas, cometendo crimes brutais, violentos.
No cerne do enredo da primeira temporada de Cangaço Novo, em seus oito episódios, está a saga da família Vaqueiro, cujo sobrenome já carrega um significado emblemático. Por meio da história de três irmãos, cujos pais foram assassinados em 1998, o seriado tece um drama que entrelaça os universos político e policial, sem deixar de fora a religiosidade popular e o messianismo.
A série honra essa tradição, mas, assim como ‘Bacurau’, aponta para novas abordagens criativas, transbordando energia inventiva.
Allan Souza Lima, em ótima atuação, interpreta o papel de Ubaldo, filho do patriarca Amaro Vaqueiro, que, após a trágica morte dos pais, fugiu de casa e foi criado em São Paulo por um militar vivido por Ricardo Blat. O rapaz, desempregado, retorna a Cratará para reivindicar sua herança e descobre que uma das irmãs, Dinorah, defendida com grande intensidade pela atriz potiguar Alice Carvalho, está envolvida com o grupo dos “novos cangaceiros”. Dilvânia (Thainá Duarte, também muito bem), a irmã mais jovem, ficou muda devido a traumas.
Ubaldo é recebido como uma espécie de Messias, encarnação de seu pai, idolatrado pela população local, que padece com a seca, os juros extorsivos cobrados pelos bancos e o poder local, a quem a interessa a manutenção da pobreza extrema e da ignorância. A tia, Zeza (a imensa Marcélia Cartaxo) do protagonista é líder da resistência, chamada de Irmandade, e deseja trazer o sobrinho, relutante, para a causa.
‘Cangaço Novo’: Nordestern
Cangaço Novo estabelece conexões com um gênero essencial ao cinema brasileiro: o chamado “nordestern” (uma alusão aos western norte-americanos), que remete a filmes que retratam grupos armados desafiando o poder estabelecido no Nordeste, remontando ao bando de Lampião.
Desde O Cangaceiro, de Lima Barreto, premiado como melhor filme de ação no Festival de Cannes em 1953, até Bacurau (2019), do pernambucano Kleber Mendonça Filho, vencedor do Prêmio do Júri no mesmo festival francês, temos diversos e notáveis exemplos desse gênero cinematográfico nacional. Não se pode deixar de mencionar, portanto, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), clássico absoluto de Glauber Rocha e um dos filmes brasileiros mais importantes já feitos, citado estética e tematicamente em alguns momentos de Cangaço Novo.
A série honra essa tradição, mas, assim como Bacurau, aponta para novas abordagens criativas, transbordando energia inventiva, contemporânea. A direção de Fábio Mendonça (da série Rua Augusta) e do baiano-curitibano Aly Muritiba (do filme Deserto Particular), também um dos produtores executivos, confere imenso vigor à narrativa e às atuações do elenco, excelentes de A a Z – vale aqui destacar a prepação dos atores e atrizes feita pela polêmica (e competente) Fátima Toledo, responsável por Cidade de Deus.
Outro ponto alto da série são as espetaculares, tensas e muito criativas cenas de ação, de tirar o fôlego, que impõem ritmo e fúria à trama, arrebatadora.
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