Minissérie dirigida por Alfonso Cuarón e estrelada por Cate Blanchett, Disclaimer abre com um texto que merece ser analisado: “atenção para a narrativa e a forma. Elas podem nos aproximar da verdade, mas também podem ser uma arma com grande poder de manipulação”. O convite à leitura desse trecho, antes das cenas, não é arbitrário: ele funciona como uma chave para decifrar o que nos será apresentado neste thriller de sete episódios.
Adaptação de um romance homônimo de 2015 da escritora Renée Knight, Disclaimer, que é uma produção da Apple TV, demanda de uma sinopse mais longa. Poderia ser descrita assim: uma documentarista premiada chamada Catherine Ravenscroft (interpretada por Cate Blanchett) tem aparentemente uma vida tranquila ao lado do marido, um diretor de uma ONG chamado Robert (papel de Sacha Baron Cohen, irreconhecível) e de um filho meio anêmico e deslocado na vida (Kodi Smit-McPhee, cujas feições frágeis o encaixam perfeitamente no personagem).
Há, paralelamente, outra história. Um professor aborrecido chamado Stephen Brigstocke (encarnado de forma brilhante por Kevin Kline, conhecido muito mais por sua participação em comédias) perde o emprego e claramente nem se importa com isso. Ele resolve, então, fermentar o seu ódio em relação à tragédia que acometeu sua família: seu filho Jonathan (Louis Partridge) morreu afogado há vinte anos ao tentar salvar o filho de Catherine em uma praia na Itália. Isso levou à depressão de sua mulher Nancy (Lesley Manville), que morreu de câncer poucos anos depois.
Mexendo nas coisas guardadas de Nancy, ele encontra objetos que não conhecia: fotos nuas de Catherine Ravenscroft e um manuscrito deixado por sua falecida esposa que supostamente revela a história real sobre o que aconteceu naquele verão na Itália. Com isso em mãos, ele resolve que é hora de se vingar da mulher que esmagou a sua família e que hoje vive bem com a sua.
‘Disclaimer’ e as diferentes versões sobre um fato
Considero ótimo o tema de fundo de Disclaimer: a discussão sobre como a realidade de um fato só está acessível por meio de recortes, versões condicionadas aos interesses e às lembranças dos indivíduos que as narram. Essa era a premissa básica da excelente série The Affair, que compartilhava a história de uma traição a partir das experiências de cada um dos envolvidos, sem jamais sugerir que uma delas seria a certa.
Na série estrelada por Ruth Wilson e Dominic West, no entanto, essa premissa é desenvolvida de forma muito inspirada pela costura feita pela direção e pelo roteiro, convidando-nos a pensar sobre a parcialidade inevitável de nossa compreensão da vida. Já em Disclaimer, isto é reduzido a duas visões apenas, sendo que claramente uma é verdadeira, e outra é falsa.
Ao tentar representar uma história que contempla um drama de uma mulher injustiçada, não há quaisquer nuances nos personagens, que se reduzem a uma representação maniqueísta.
O mote que inspira a narrativa é a revelação do que está no livro de Nancy, que representa Catherine como uma mãe sedenta por sexo que, na breve ausência do marido, atrai um jovem inexperiente tal como uma aranha que aprisiona a presa em sua teia. Essa personalidade da mulher jovem e sedutora é despida de qualquer nuance – e, por óbvio, já fica claro desde os primeiros episódios que ela é falsa.
O mistério, portanto, estaria no desvendamento sobre o que realmente aconteceu naquele verão, o que só ocorre, claro, nos últimos episódios (e que, em minha humilde leitura, é uma explicação algo decepcionante). Mas a fragilidade de Disclaimer está nas miudezas, nos detalhes que se escondem na construção das personagens e que podem passar batido.
Na série de Alfonso Cuarón, há uma mulher poderosa (uma profissional renomada e premiada) em torno da qual orbitam quatro homens fracos. O primeiro é o esposo amoroso que logo se torna um homem machista profundamente ofendido pela sexualidade da mulher (isso fica muito claro no brilhante diálogo final que irá manter com Catherine). O segundo é o homem velho sem propósito, que dedica a vida a cultivar a raiva e o desejo de vingança.
Por fim, há os jovens: o fantasma de um belo rapaz morto, que pode ter sido uma vítima inocente encantado por uma sereia perigosa, e um pós adolescente sem motivação, que se arrasta pela vida sem conseguir se conectar com ninguém – quase um incel, mas sem forças até para odiar as mulheres.
Dito de forma mais clara, ao tentar representar uma história que contempla um drama de uma mulher injustiçada, não há quaisquer nuances nos personagens, que se reduzem a uma representação maniqueísta. Tudo isso torna difícil a identificação com a história e, mais do que isso, faz com que a trama fique previsível – um crime máximo em termos de thriller.
Apresentada como uma heroína feminista, com direito a frases de “agora é a hora de ouvirem a minha voz”, Catherine Ravenscroft falha por ser pouco crível e, pior, por estar atrelada a uma história que, em sua essência, é fraca. Tanto Cate Blanchett quanto Alfonso Cuarón mereciam mais.
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