Aparentemente, há uma febre ficcional em torno do canibalismo. Primeiro foi Dahmer, depois Yellowjackets, e agora chega até nós uma comédia improvável – e, justiça seja feita, bem engraçada – na Amazon Prime. Trata-se de Os Horrores de Dolores Roach, produção da Blumhouse, que também está por trás de incontáveis filmes de terror, como a franquia de Atividade Paranormal.
Mas a história de Dolores Roach não começa na TV. O enredo original vem de uma peça off-Broadway chamada Empanadas Locas, que depois se transformou em podcast e, por fim, nesta série de humor protagonizada pela atriz porto-riquenha Justina Machado (a eterna Vanessa na mente dos tantos fãs de Six Feet Under). Ela é a tal Dolores Roach (sobrenome real Rocha), uma mulher que passa dezesseis anos na cadeia ao levar a culpa em lugar do namorado traficante de drogas, a quem amava profundamente.
Só que, ao deixar a cadeia, ela descobre que o parceiro realmente deu no pé. Mas há mais tristezas pelo caminho: o seu bairro em Nova York, Washington Heights (conhecido por ter uma grande comunidade latina), foi totalmente gentrificado. Nada lá parece permanecer o mesmo, e a comunidade local se transformou em um ambiente hipster em que desempregados tentam fazer alguma grana surfando na onda dos podcasts.
Só há um elemento que não mudou: uma pequena biboca que vende empanadas. O dono morreu, e agora é o filho dele, Luis Batista (o ator cubano Alejandro Hernandez), que toca o Empanadas Locas. O restaurante parece estar sempre sujo, e Luis e sua atendente Nellie (Kita Updike) lutam para pagar as contas e dependem dos poucos clientes que restam.
Dolores encontra em Luis – que, quando criança, era apaixonado pela traficante do bairro – algum apoio para poder se colocar de volta no prumo. Mas, em dezesseis anos, ela só aprendeu uma coisa que pode servir de alguma utilidade profissional: fazer massagens com sua antiga colega de cela. Experiente no ramo, a mulher também ensinou Dolores a como tocar nos lugares exatos se quiser matar os seus clientes enquanto eles estão relaxados.
Uma serial killer acidental
A partir daí, os rumos que serão tomados pela história são razoavelmente previsíveis. Em suma, Dolores vai se tornando – de forma involuntária! – uma serial killer acidental. Quanto mais ela tenta fazer a coisa certa, mais o destino parece estar lhe dando uma rasteira e complicando as coisas para o seu lado. A chave pela qual tudo isso ocorre em Os Horrores de Dolores Roach é o humor, que nos é entregue desde o início pela performance muito inspirada de Justina Machado. Ela tem um jeito bastante hilário de se mostrar estupefata pelas peças pregadas a ela por algum tipo de força incontrolável.
Boa parte da diversão da série se dá por causa sobretudo de um elenco quase inteiramente formado por pessoas não-brancas.
Mais que isso, a Dolores Roach de Justina faz jus ao talento dessa atriz latina que conseguiu, ao longo de toda a sua carreira, trazer vida a personagens empáticas e que ressoam muito como “gente como a gente”. Esta é uma artista muito facilmente “gostável”, e é bem difícil que alguém acabe não torcendo por Dolores, mesmo que ela esteja causando muito mal para a sua comunidade.
O brilho de sua performance ganha um par à altura ao lado de Luis, o personagem mais abertamente engraçado da trama. Maconheiro assumido, o dono das Empanadas Locas parece estar sempre relaxado e consegue encontrar com bastante facilidade saídas para as situações mais estapafúrdias que acontecem. Obviamente, alguém tão cuca fresca tem também seus segredos sombrios. Juntos, Justina Machado e Alejandro Hernandez soam como se tivessem sido feitos um para o outro – ao menos no campo artístico.
Mas boa parte da diversão trazida por Os Horrores de Dolores Roach se dá por causa da constituição de um universo particular em Washington Heights, apresentado por meio das casas, dos ambientes e sobretudo por um elenco quase inteiramente formado por pessoas não-brancas. Quase todos os atores e atrizes são latinos, negros ou asiáticos. Os poucos brancos em cena – como Marc Maron, de Glow – desempenham papéis que talvez pudessem ser entendidos como vilões (embora, vale dizer, a “heroína” aqui seja uma serial killer).
Embora perca um pouco o ritmo ao longo dos oito episódios, Os Horrores de Dolores Roach tem uma certa toada tensa e absurda que faz a gente desejar pela segunda temporada para descobrirmos como Dolores e Luis vão se virar. Não deixe de prestar a atenção na participação quase imperceptível (e muito engraçada) da cantora Cyndi Lauper na série.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.