Quantas séries sobre os anos 80 ainda conseguimos aguentar? Aparentemente, há ainda muito saudosismo a ser reativado pela televisão ao lembrar dessa década que, para muitos, produziu algumas das principais obras culturais do nosso século. O estrondoso sucesso de Stranger Things, homenageando boa parte do cinema feito na década de 1980 (em filmes que foram exibidos incontáveis vezes na Sessão da Tarde da Globo, como Goonies, E.T. – O Extraterrestre, Viagem ao Mundo dos Sonhos, entre tantos outros), já mostrou que há desejo – e mercado – para novos produtos que busquem visitar esta estética.
E quando achávamos que já tínhamos nos saturado dessa viagem oitentista, surge, quase que timidamente, a primeira temporada de Glow, uma produção original da Netflix. Concretizada pelos produtores de Orange is the new black, Glow situa sua abordagem em um universo bastante específico: os exagerados espetáculos de luta livre que ocuparam a TV dos anos 80, em programas conhecidos no Brasil como telecatch, nos quais competidores bastante caricatos se enfrentavam em disputas pouco convincentes. Misturando esporte com humor, os programas de luta de livre se tornaram um clássico da televisão malfeita e, por isso mesmo, viraram objeto de culto.
Mas Glow não fala de qualquer disputa de luta livre: a série situa o mundo do telecatch em um programa (totalmente fake e amador, é claro) em que apenas as mulheres se enfrentam. A história se centraliza na vida de Ruth Wilder (Alison Brie, que fez Community e Mad Men), uma atriz que se leva bastante a sério, mas cuja carreira não decola. Passando necessidades financeiras, ela encontra apoio apenas na melhor amiga, Debbie (Betty Gilpin, que fazia uma médica desmiolada em Nurse Jackie), uma atriz de mais sucesso e que está dando um tempo na carreira por ter tido um filho e ter virado mãe de família.
Por uma série de circunstâncias, Ruth e Debbie acabam se envolvendo com um projeto de um diretor de cinema fracassado, Sam Sylvia (Marc Maron), que, ao receber dinheiro de um produtor bon vivant (Chris Lowell), começa a produzir um programa de luta de mulheres chamado Gorgeous Ladies of Wrestling (Lindas Garotas da Luta Livre), ou simplesmente GLOW. Assim, o “teatro” de luta busca repetir todos aqueles clichês típicos do telecatch, mas com mulheres: as lutadoras têm sua nacionalidade fortemente marcada, a heroína é norte-americana e todas as “vilãs” são rivais aos Estados Unidos (como árabes, russas, etc.).
Se por um lado parece uma série oportunista, que surfa na onda dos anos 80, Glow consegue cativar justamente por sua despretensão: não intenta ser uma grande série e, por isso mesmo, torna-se uma boa surpresa no cardápio da Netflix. Seu trunfo, na verdade, está no humor do texto, oriundo justamente dessa falta de ambição. Satírica sem forçar a barra, Glow acaba conquistando por ser uma diversão leve, com piadas bem sacadas. As lutadoras são tão ridiculamente caricatas que só nos resta rir. Uma delas, por exemplo, se chama “Rainha do Bem-Estar” (Welfare Queen, ou “Rainha do Seguro Desemprego”, numa tradução mais literal) e tira sarro de uma classe média baixa que vive às custas do governo (vale lembrar que a série se desenrola em pleno governo Reagan). Outra lutadora de origem árabe é nomeada “Beirute”, e uma latina é batizada de “Machu Pichu”. Tudo, é claro, beirando o limite do politicamente incorreto, tal como uma boa (e trash) disputa de luta livre.
Glow se desdobra junto a uma mensagem de empoderamento feminino bastante relevante e que, em alguma medida, começava a se insinuar nos anos 80.
Além disso, Glow se desdobra junto a uma mensagem de empoderamento feminino bastante relevante e que, em alguma medida, começava a se insinuar nos anos 80. Assim, há alguma originalidade em situar essa década em um contexto em que as mulheres dão as cartas. Isso dá margem também para que vários dramas sejam explorados na trama, como a traição entre amigas, o aborto, a dependência dos pais, a pressão social para desistir da carreira, entre outros temas.
As lutadoras são todas divertidas, embora poucas consigam de fato um maior espaço na narrativa. Destacam-se no elenco Alison Brie (que parece aqui tentar descolar-se das mulheres certinhas que interpretou em Community e Mad Men, dois grandes sucessos), mas, sobretudo, dois personagens acabam roubando a cena: Betty Gilpin está fabulosa como uma estrela da TV gostosona, meio debochada, recém-parida, e cujos peitos estão sempre vazando; e Marc Maron também está divertidíssimo como o diretor que se levou a sério demais e para quem só sobrou a alternativa de dirigir amadoras em um programa trash de luta (uma curiosidade: o programa Glow realmente existiu e chegou a ser exibido no Brasil pelo SBT).
Deliciosa – justamente por não pretender ser muito mais do que isso –, Glow já está renovada para uma segunda temporada, e encerra com um desejo de reencontrar estas mulheres para mais uns tantos episódios.