Jeffrey Tambor (de Se Beber Não Case) é um ator que aparenta ter um caso de amor com comédias televisivas marcantes. Na década de 1990, estrelava o clássico cult The Larry Sanders Show, que juntamente com Seinfeld, Ellen e Murphy Brown, ditava o tom da época com seu humor provocativo. Já nos anos 2000, estrelou Arrested Development, considerada por muitos críticos especializados uma das dez melhores séries da última década (você encontra as quatro temporadas na Netflix).
Em Transparent, primeira empreitada da Amazon Studios em seriados via streaming, Tambor retorna à televisão no papel de Morton Pfefferman, professor universitário, judeu, divorciado e pai de três filhos que revela à família ser transgênero (conceito abrangente que engloba grupos diversificados de pessoas que têm em comum a não identificação com comportamentos e/ou papéis esperados do sexo biológico, determinado no seu nascimento).
A série, apesar de por vezes se perder na elaboração de muitas histórias paralelas, surpreende pela complexidade dos personagens, diálogos marcantes e direção de arte e fotografia primorosas.
Intercalando passado e presente, conhecemos a cada episódio o processo de transformação de Morton em Maura (nome que ele passa a usar quando se assume), em sua angustiante busca por encontrar sua verdadeira identidade e suas primeiras frustrações ao compreender que dava um passo em direção a um mundo que não apenas não a compreendia, bem como não a aceitava.
A primeira temporada divide o foco das atenções entre Maura e seus três filhos e a relação destes entre si e com o mundo. Ali (a filha do meio) é irresponsável e financeiramente dependente do pai. Josh (o mais novo) é narcisista, egocêntrico e afetivamente carente. Já Sarah (a mais velha) é a única que aparenta compreender e aceitar a transgeneridade do pai, muito em função de ser bissexual e abandonar o marido para assumir um relacionamento com uma antiga amante.
Maura leva uma vida conflituosa não apenas no relacionamento com seus filhos, excessivamente egoístas, mas principalmente em seu processo de enxergar-se como mulher. Ela se sente culpada por seus sentimentos, não consegue se expressar perante sua família e sociedade, chegando ao ponto de colocar roupas masculinas quando na presença de alguém conhecido.
Ao encontrar carinho e compreensão em Davina (Alexandra Billings, primeira atriz transexual a interpretar uma personagem transgênero na televisão norte-americana), Maura dá os primeiros passos na busca de sua identidade enquanto mulher e de se afirmar perante os filhos. Entretanto, as decisões que a personagem toma fazem com que ela viva momentos de completa solidão, preenchidos pelo vazio de sua própria existência em uma personalidade na qual não consegue se enxergar.
A série, apesar de por vezes se perder na elaboração de muitas histórias paralelas, surpreende pela complexidade dos personagens, diálogos marcantes e direção de arte e fotografia primorosas, capazes de criar uma sensação de desconforto e morbidez, reforçando assim a densidade do tema abordado no seriado.
Premiada como melhor série (comédia ou musical) e melhor ator (Tambor) no Globo de Ouro deste ano, Transparent deve parte de seu sucesso a seriados como Ellen (1994-1998), que introduziram o debate sobre gênero e sexualidade nas agendas das emissoras de entretenimento nos Estados Unidos.
Ellen era sucesso de crítica e público nos Estado Unidos, até que protagonista e personagem se assumem homossexuais, levando a ABC a incluir um aviso antes do início do show para “alertar os pais sobre a natureza do programa”. Começou então uma perda acentuada de audiência, já que os telespectadores passaram a considerar o seriado como “gay demais”. Após sofrer um ano inteiro com baixas audiências, o programa foi cancelado ao fim da quinta temporada.
Se o conservadorismo do público limou ali a continuidade do programa, Ellen ao menos mostrou que era necessário abrir as portas do armário e levar outros temas para o grande público, dando espaço assim para que shows como RuPaul’s Drags Race, Queer Eye for the Straight Guy e Transparent pudessem existir.
Uma das curiosidades de Transparent fica por conta de Jill Solloway (Six Feet Under), criadora do seriado: seu pai se assumiu transexual cerca de três anos antes. Segundo disse em entrevistas, sua experiência pessoal serviu para que compreendesse o que os personagens sentiam, mas fez questão de deixar claro não se tratar de uma produção autobiográfica.
Vale a reflexão sobre a importância que Transparent tem ao trazer à luz do debate a questão de gênero, em especial em um momento que, enquanto escrevo este texto, tramita na Câmara do Deputados em Brasília o Projeto de Lei nº 6583/13, popularmente conhecido como “Estatuto da Família”. De acordo com o texto do projeto, fica definida como entidade familiar o núcleo formado a partir da união entre homem e mulher.
Como abordou a Revista Escola (editora Abril) em recente matéria sobre gênero e sexualidade (leia aqui), “cada um de nós interioriza as estruturas do universo social e transforma-as em jeitos de ver o mundo que orientam nossas condutas”.
Atualmente, existem vários grupos, movimentos e maneiras de nos identificarmos com gêneros e, consequentemente, viver a sexualidade, como afirma a professora Guacira Lopes Loura, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): “Não há apenas uma forma de ser, mas tantas quantas são os seres humanos”.
Afinal, precisamos conversar sobre gênero.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.