Se você costuma ver TV pensando em relaxar, talvez deva considerar passar longe de Treta, série da Netflix estrelada pela comediante Ali Wong e pelo ator Steve Yeun (de The Walking Dead e Não! Não Olhe!). Digo isto porque esta série – como o próprio título já entrega – é uma pequena obra-prima sobre frustrações, vingança e ódio e de que forma estes sentimentos conseguem se introjetar (da pior forma possível) nas nossas relações cotidianas.
Só que isso é feito de maneira bem especial na produção do bombado estúdio A24 (que executou, entre outras coisas, o filme vencedor do Oscar desde ano, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo). Para começar, trata-se de uma obra de humor – e do bem incômodo, que consegue arrancar aquele tipo de risada que escapa quando estamos diante de situações bem constrangedoras. O que nós vemos, ao longo de 10 episódios, são pessoas adultas se enfiando em situações ridículas e infantis simplesmente porque não aguentam não fazer isso. E isso, por si só, é hilário.
O outro elemento importante aqui é que estamos diante de uma série americana composta quase exclusivamente por atores asiáticos. Todos os personagens principais são desempenhados por profissionais que descendem de japoneses e sul-coreanos. Mas – e aqui está a grande sacada – esta não é uma série “étnica”: apenas ocorre de os personagens terem essa característica. A história não gira em torno disso, o que, sem dúvida, é um grande trunfo de Treta.
Sintonia fina
https://www.youtube.com/watch?v=0wI9TG1xA3o
A grande atração aqui está na interação ocorrida entre a dupla de protagonistas, que vivem personagens opostos que se complementam de uma maneira caótica. Amy (Ali Wong) é uma empresária super bem sucedida que está prestes a vender seu negócio para uma grande empresa, de propriedade de uma milionária bem estereotipada chamada Jordan, ou “Jordana” (papel da veterana Maria Bello).
Mas ocorre que, certo dia, seu caminho cruza com o de Danny (Steve Yeun), um sujeito fracassado que tenta, sem sucesso, fazer seu negócio, como um faz-tudo que conserta coisas na vizinhança, dar certo. Quando inicia o primeiro episódio, Danny está em uma loja de eletrodomesticos tentando devolver várias churrasqueiras que comprou (não conto mais para não estragar a experiência com este episódio, que é magnífico).
A grande atração aqui está na interação ocorrida entre a dupla de protagonistas, que vivem personagens opostos que se complementam de uma maneira caótica.
Só que, ao sair da loja, seu carro é fechado pelo de Amy, o que serve como um catalisador para as frustrações que ambos carregam, e que explodem como um vulcão que entra em erupção. Isto culmina numa briga de trânsito, que aumenta para uma perseguição, que vai galgando degraus rumo a uma obsessão: ambos estão com ódio um do outro por causa de uma situação absolutamente banal.
Mas, obviamente, a série está só começando. E o que vamos vendo é uma escalada rumo ao caos que, na verdade, está presente dentro de cada um deles e das relações que eles mantêm com as pessoas em sua volta. Amy, por exemplo, parece ter a vida perfeita: é casada com um homem compreensivo e bonitão (Joseph Lee), para quem a raiva é um sentimento que pode ser controlado à base de muita Yoga e mindfullness.
Mas há muito mais que isso, e nenhum dinheiro do mundo parece preencher o vazio que Amy carrega dentro de si. E talvez seja por isso que ela logo se atrai (sob a forma de repulsa, em um paradoxo que faz todo o sentido) a Danny, um homem que também possui sua cota de frustrações: ele tenta ganhar dinheiro para trazer seus pais de volta da Coreia do Sul, depois de levarem um golpe desencadeado por atos criminosos do próprio primo, Isaac (vivido por David Choe, que também é um artista plástico renomado e autor das peças que aparece no início de cada um dos episódios). Além disso, ele leva nas costas o irmão acomodado, Paul (Young Mazino).
‘Treta’: uma ode à raiva

É fato que vivemos tempos tão tensos que há hoje uma espécie de mercado do bem-estar, repleto de discursos e produtos que tentam nos ensinar a relaxar e a levar uma vida melhor e mais “leve”. De certa forma, todas essas narrativas pecam não pelo que propõem, mas por fecharem as portas para que o nosso direito de ter raiva – pela quantidade de tretas que nos ocorrem todos os dias – possa eclodir.
Há, portanto, uma boa dose de subversão nesta pequena grande série. Ainda que as consequências dos atos desaforados de Amy e Danny sejam, por óbvio, quase sempre negativos, vai ficando claro ao longo dos episódios que eles ajudam a trazer à tona a verdade que não pode ser mais escondida.
Com roteiro surpreendente, a série vai tomando rumos imprevistos, na linha do “nada é tão ruim que não possa piorar”. Todos os problemas que surgem no caminho de Amy e Danny culminam, por fim, em um episódio final de temporada brilhante e poético, que faz a gente pensar que Treta é realmente, uma pérola de qualidade ímpar dentro dos atuais lançamentos de streaming.
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