Dia desses, passei por uma situação inusitada nas redes sociais. Durante a Páscoa, o jogador Joel, do Botafogo, postou um vídeo em seu Instagram no qual distribuía ovos de chocolate para crianças carentes em um semáforo. A cena, obviamente, comove pela boa ação que presenciamos – agregada ao fato de que uma das crianças pergunta se o benfeitor é famoso, ao que o jogador responde que não.
No entanto, algo me incomodou quando eu vi esse vídeo, na postagem feita por um repórter do canal ESPN: o fato de que ele foi gravado por alguém que estava ao lado do jogador, dentro do seu carro, e divulgado em sua própria rede social. À sequência desta postagem no Twitter, comentei algo como “a cena é bonita, e seria ainda mais bonita se ele não tivesse filmado”. A reação ao meu comentário me espantou. Levantou-se uma horda de haters me mandando xingamentos de toda espécie (iam desde palavrões a coisas como “chata” ou “problematizadora”).
Ora, vejamos o que causa desconforto na imagem. A boa ação é absolutamente louvável, e certamente Joel fez a alegria de muitas crianças na Páscoa. Não há dúvidas quanto a isso. O incômodo se dá pelo fato de que, muitas vezes, ignoramos que há ali uma troca: a caridade ao pobre se dá em retorno de uma muito esperada visibilidade nas mídias. Se há ou não equilíbrio nesta troca é uma questão bastante delicada.
Não são poucos os programas televisivos que se fundamentam na ajuda às pessoas. Podemos falar de caridade, no termo cristão, ou de assistencialismo, no termo mais crítico normalmente associado às mídias. Se caridade se define, conforme o dicionário, por ser uma ação altruísta de ajuda a alguém sem buscar qualquer recompensa, não podemos dizer que é o que ocorre em quase todos os programas que pretendem melhorar a vida de uma pessoa que passa alguma necessidade. Assistencialismo é mais preciso: diz respeito a dar assistência pontual para alguém em detrimento de políticas públicas mais efetivas para suprir a necessidade de um indivíduo.
Se fôssemos enumerar os programas de TV que fazem algum tipo de assistencialismo, a lista seria infindável. Vão desde os quadros do Caldeirão do Huck, na Globo, do Domingo Legal e Programa da Eliana, no SBT, às reportagens popularescas do Domingo Show, na Record. São quase sempre histórias que comovem, por nos mostrar pessoas que sofrem, que chegaram ao fundo do poço e, de lá, só podem subir (com uma ajudinha dos famosos, é claro). Eis um perfeito arco narrativo do qual a ficção se aproveitou desde sempre.
E qual é o problema de exibir a desgraça alheia, se o objetivo é “resolvê-la”? (Isto me lembra, inclusive, que boa parte dos haters no caso Joel me respondia “pelo menos ele está ajudando, e você, que não faz nada?”). Eu diria: o problema é que esta balança é desequilibrada. Certamente os programas assistencialistas ganham muito mais do que doam ao explorar as histórias tristes – não importa quantos os milhões distribuídos em prêmios. Não nos enganemos: o capital social angariado à empresa que veicula a história é muito maior do que a efetividade da ação, que é pontual e, na melhor das hipóteses, atinge pouquíssimas pessoas (não se trata de uma política pública, conforme já dito).
Se caridade se define, conforme o dicionário, por ser uma ação altruísta de ajuda a alguém sem buscar qualquer recompensa, não podemos dizer que é o que ocorre em praticamente quase todos os programas que pretendem melhorar a vida de uma pessoa que passa alguma necessidade.
Além disso, vale a pena lembrar de outra coisa. Palavra por vezes desgastada pelo uso, sensacionalismo envolve múltiplos sentidos, e um deles diz respeito à singularidade. Traduzindo: o jornalismo, essencialmente, fala daquilo que é universal; em outras palavras, de interesse público. Diz-se que um fato é sensacionalista quando ele se torna extremamente singularizado, ou seja, impacta na vida de uma ou de poucas pessoas. Assim, por seu alcance limitado na vida da população, os programas de ajuda alheia são, por sua natureza, sensacionalistas.
Mas o mais interessante é notarmos que esta concepção acerca da caridade pelas mídias já atingiu a coletividade. Na edição deste ano do Criança Esperança, que talvez seja o projeto social mais importante da Rede Globo, a emissora teve que planejar uma estratégia publicitária que rebate a descrença que atinge o projeto. Em parte, a crise se dá pela desconfiança da população sobre o destino dado à verba arrecadada pela atração. Mas não dá para desconsiderar um sintoma relevante: boa parte da audiência já reconhece que programas deste estilo mais contabilizam “pontos sociais” às emissoras do que, de fato, realizam mudanças positivas às pessoas. O ceticismo coletivo quanto ao Criança Esperança quase que requisita que a Globo, entendida como magnânima, passe a ajudar as causas sociais sem divulgar esse apoio.
E no meio dos formatos assistencialistas tão explorados pela TV, há ainda espaço para as bizarrices, como o programa Estrelas Solidárias, a reconfiguração do projeto de colunismo social da apresentadora Angélica na Globo para englobar as boas ações das celebridades. Há uma espécie de contrassenso já no título e na proposta do programa, pois a própria existência das “estrelas” (e, portanto, do incalculável abismo social que separa celebridades, os escolhidos, da população em geral) já é, em si mesma, uma das razões pela qual existem pessoas tão pobres e necessitadas.
No anúncio oficial, Estrelas Solidárias afirma que tem a missão de inspirar o público com exemplos solidários. Mas não sejamos ingênuos: a conta não fecha, e a balança de benefícios pesa bem mais para a empresa que angaria visibilidade ajudando os outros. No fim das contas, a experiência do programa envolve tentar verificar o grau de sinceridade no altruísmo daquelas celebridades que se colocam ali, como ver o quão crível é o interesse de Wanessa Camargo por uma população ribeirinha em Manaus.
Em suma, conforme diz aquele ditado, a televisão nos lembra a todo instante que não existe almoço grátis na natureza. Em outros termos: não existe caridade na TV sem uma contrapartida bem relevante para ela. Pode-se ainda remeter a outro provérbio, desta vez bíblico, que preconiza que “quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”. Por sua própria função, sustentada no visível, a verdadeira caridade é impossível para a televisão.