Em pleno 2016, após pelo menos sessenta anos em que convivemos com TV no Brasil, há ainda muita gente que se espanta que certos programas continuem sejam consumidos massivamente. Afinal, por que tanta gente “perde” seu tempo vendo novela, por exemplo? Qual a graça de ficar vendo pela tela alguém cozinhar sem poder sentir o sabor? Qual o sentido de ficar vendo o blá-blá-blá inesgotável sobre futebol, remexendo em cada lance que aconteceu na partida de nosso time? Para muitos, a resposta é simples: tudo isso serve para nada além de perder tempo inutilmente (pois poderíamos estar fazendo algo melhor no mesmo período).
Conforme já debatido frequentemente nesta coluna, esta leitura na televisão é, no mínimo, ingênua. Afinal, como todos os meios de comunicação, a TV é um produto do mundo social, feita por pessoas inseridas neste mesmo mundo social, para espectadores que também tecem esta trama complexa do mundo social. Ou seja, é bastante óbvio esperar que aquilo que produzimos, em alguma medida, fala sobre nós – simplesmente porque é inevitável que a televisão faça isso.
Certamente, isso não significa que a TV seja um espelho a refletir de forma translúcida a vida tal qual ela ocorre – afinal, isto é inatingível não apenas aos discursos da mídia, mas a todos os discursos. Quem fala alguma coisa está fatalmente atrelado ao seu olhar sobre o mundo, aos seus filtros, aos seus preconceitos. Imaginar que algum discurso (jornalístico, televisivo, da vida cotidiana) não seja assim, é desejar o impossível.
Não obstante, é preciso voltar à ideia que abre este texto: a TV fala sobre nós. E talvez essa simples resposta seja a melhor a ser dada para explicar porque certos formatos tão banais, tão “sobre nada”, continuam vigentes na televisão, tal como os reality shows. Aqueles que os acusam de configurarem mera perda de tempo escapam de uma chance interessante de observar o quanto estes programas, na verdade, mudam o tempo todo – no sentido de que eles acompanham, tal qual uma onda, a forma que nós, enquanto grupo, nos posicionamos perante o mundo.
Vejamos, a título de ilustração, as repercussões ocorridas durante esta semana deste reality show irresistível chamado MasterChef Brasil. O programa é um exemplo de incrível sucesso no país: não importa qual a edição, angaria uma legião de espectadores interessados não apenas na comida (a qual saboreamos com os olhos), mas pelo “capital humano” que nos seduz a cada episódio.
É preciso voltar à ideia que abre este texto: a TV fala sobre nós. E talvez essa simples resposta seja a melhor a ser dada para explicar por que certos formatos tão banais, tão ‘sobre nada’, continuam vigentes na televisão.
Mesmo que consideremos que muito ali é orquestrado – que em MasterChef Brasil, por exemplo, os jurados têm papéis marcados, são forçados, a edição desfavorece certos candidatos, etc. – nós assistimos a estes shows justamente em busca de “migalhas” da vida real, quando as pessoas despem de suas “fantasias” e deixam escapar um pinguinho de si mesmas. Quando tudo parece over, cenográfico demais, o fracasso é eminente – e talvez esta seja uma sétima hipótese que eu agregaria à análise do insucesso de X-Factor listados por Maurício Stycer.
Sendo assim, os reality shows culinários em geral fazem sentido porque refletem elementos da cultura corporativa, atualmente vigentes na vida social. Eles têm um caráter pedagógico, relatam uma certa visão de aprendizagem no mundo do trabalho: neste ambiente, é preciso disciplina, obediência, baixar as orelhas para aquilo que falam os mais “sábios”, os mais “experientes”. Quem escapa deste domínio é visto como um arrogante, que precisa ser “domado”. Aos “professores”- os jurados – cabe a tarefa de ser duro, de sempre colocar o pupilo no seu lugar (neste sentido, a chef Danielle Dahoui, de Hell’s Kitchen, nos decepciona por não parecer dura o suficiente).
É no mínimo curioso – e paradoxal – que isto ocorra justamente num momento em que se debate publicamente a falta de regras mais rígidas na educação formal, e o quanto isso pode ser prejudicial ao aprendizado dos estudantes. É quase como se a TV trouxesse alguma compensação a algo que acreditamos faltar na vida “real”.
Talvez seja por isso que nos sentimos triunfantes com o episódio de MasterChef Brasil da última semana, com o corte dado por Ana Paula Padrão no participante João. Ela o alertou, sutilmente, que é preciso não confundir “confiança com arrogância”, ao que ele prontamente se defendeu que não era esta a impressão que queria causar. Em seguida, um outro momento de embate nos regozijou: quando ele a chamou de leiga, Ana Paula revidou, espirituosamente, assumindo que é leiga sim, mas que são os leigos justamente que devem ser agradados pelos chefs de cozinha, pois são os clientes.
Por que, em alguma medida, nos sentimos vingados pelas respostas de Ana Paula Padrão? De novo, volto ao social: há ali uma compensação a todas nós mulheres, em razão de que esta temporada de MasterChef Brasil tem tocado fortemente numa questão vigente, que é a diferença entre homens e mulheres no ambiente de trabalho. Há um personagem, Ivo, que é constantemente acusado de machismo por sua postura agressiva (no último episódio, em certo momento, ele se irrita com uma colega e pede para que ela pegue uma vassoura e varra o chão).
Assim, a “revanche” de Ana Paula, em alguma medida, tem tom de resposta coletiva, e acaba por representar a todas as mulheres que em alguma medida já se sentiram em situações semelhantes (menosprezadas, ignoradas, infantilizadas) no ambiente de trabalho, e não conseguiram se posicionar de forma tão eficiente. E mais uma vez, a TV reflete a vida social – sendo sempre um espelho quebrado, mas ainda assim um espelho.