Do lado de fora de nossas casas, onde estamos confinados devido ao isolamento social, o mundo transcorre de forma caótica, atropelada, que foge de nossa compreensão em muitos aspectos. Os meios de comunicação – em especial a televisão, devido às suas características – adquirem um papel de uma janela para o mundo. É na TV que espiamos e tentamos entender um pouco o que acontece para além dos nossos limites.
Esse papel de tradução, vale lembrar, é de uma responsabilidade e tanto – uma vez que se dispõe aos veículos jornalísticos a tarefa de desvendar e significar aquilo que estamos inviabilizados de ver in loco. Todo tipo de informação equivocada ou distorcida, portanto, tende a ter seu efeito nocivo potencializado no atual momento.
Na semana que se passou, vimos um levante mundial de um movimento antirracista que explodiu após o assassinato de George Floyd, em Minneapolis. O homem negro foi sufocado por um policial branco durante uma abordagem, nas ruas, fazendo que esta fosse uma morte amplamente filmada e difundida. Desde então, uma onda de protestos começou a ocorrer no mundo inteiro, incluindo o Brasil, configurando o que muitos pesquisadores consideram como as maiores manifestações desta natureza registradas nos últimos 50 anos.
A televisão, como já dito, precisou (e tem precisado) significar este levante. O que temos visto, em um primeiro momento, foi uma narrativa estarrecida em frente aos fatos. Nos telejornais paranaenses, os apresentadores e repórteres destacaram o fator do “vandalismo” e do “rastro de destruição” deixado pela cidade, especialmente em prédios públicos e na junta comercial de Curitiba. Podemos dizer, então, que o enquadramento é o recorrente dado às manifestações públicas: a da condenação, da crítica e do desencorajamento à violência.
Mas ainda temos outra questão na jogada: por que, mesmo com protestos antirracistas, as vozes negras não são ouvidas?
Mas o tempo esquentou, e esta “janela” para a realidade já não é mais suficiente. Hoje, há subsídios para nos perguntar: afinal, o que é a violência? Será que a explosão de violência direcionada a edifícios se equivale à violência sofrida pela população negra por séculos ininterruptos? (Um bom sintoma dessa ressignificação achou lugar na fala do estilista Marc Jacobs, que defendeu os protestos, mesmo tendo uma loja sua quebrada. Escreveu Jacobs: “nunca deixe alguém convencê-lo que vidro ou propriedade quebrada é violência. Fome é violência. Falta de teto é violência. Racismo é violência“).
Não obstante, outras “espiadas na janela” por parte da televisão têm trazido uma leitura mais adequada desse real que se eleva para além de nossos muros. Nos telejornais da Globo, os protestos foram vistos, sobretudo nos Estados Unidos, sob o olhar do testemunho, em primeira pessoa, com uma câmera trêmula típica do registro amador – captando, inclusive, cenas de ameaças a jornalistas. Essa câmera pessoal, aliás, traz mais vivacidade àquilo que se vê e faz com que os espectadores se sintam mais propensos a tirar suas próprias impressões daquilo que veem.
Mas ainda temos outra questão na jogada: por que, mesmo com protestos antirracistas, as vozes negras não são ouvidas? Foi preciso que houvesse uma cobrança pública, nas redes sociais, para que a Globo News se tocasse que não se fala de racismo sem trazer representantes negros para opinar. Criticado, o Em Pauta teve nova edição, agora sintonizada com a voz das ruas. Ponto para a emissora, que humildemente reconheceu um erro e buscou corrigi-lo.
Mas penso que, como quase tudo que acontece nos meios de comunicação, os avanços vêm pelas beiradas. Notamos que isso ocorre, por exemplo, quando falas que seriam decodificadas como raivosas ou inadequadas (e essa reação à voz dos negros, vale dizer, é uma abertura ao racismo) são agora reverberadas. Cito para ilustrar o episódio do programa Encontro com Fátima Bernardes, que debateu o tema com quatro pessoas negras numa videoconferência. Em certo momento, o repórter Manoel Soares, do elenco fixo do programa, interpela Fátima Bernardes dizendo: “temos que levar em consideração que há menos de 130 anos, Fátima, você me compraria por R$ 400, e por mais ou menos R$ 5 mil na carteira, você levaria todo mundo que está nessa tela aparecendo. Estamos falando de sua avó e da sua bisavó, Fátima”.
O fato de que Fátima Bernardes, jornalista/celebridade branca, possa ser “confrontada” em cadeia nacional por Manoel Soares, repórter negro, sem que ele seja decodificado como desaforado ou exagerado, já é um serviço gigantesco que a televisão presta a todos nós, brancos, para que enxerguemos, por fim, que todos nós temos responsabilidade pela violência sofrida diariamente pelos negros.