Dentre a vasta complexidade que abrange a experiência com a televisão, há um fator que é central para pensar no apelo e na relação que mantemos com este veículo: o selo do “ao vivo”. Ou seja, a crença coletiva de que a televisão se presta, sobretudo, para transpor os acontecimentos na tela à medida em que eles se desenrolam no mundo. Enquanto o cinema é o território nato da ficção, a televisão teria uma vocação inegociável para a transmissão direta. Conforme a crença que depositamos nela, é pela televisão que conseguimos contemplar a vida no exato momento em que ela sucede – vide, por exemplo, a experiência quase hipnótica que tivemos em 2001 ao assistir à queda das torres do World Trade Center.
No entanto, é claro que há muito mais nessa intrincada relação mantida com este que é o mais amado e odiado meio de comunicação no Brasil. Afinal, somos uma nação de 200 milhões de críticos da televisão, como diz Nilson Xavier (leia análise aqui), sempre a postos para tiramos nossas próprias conclusões acerca das transmissões feitas pelas emissoras. Não obstante, assistimos a um momento histórico em que a TV deixa de reinar absoluta com veículo central e precisa se adaptar não apenas aos seus 200 milhões de críticos, mas aos mesmos 200 milhões de plugados na internet que se hoje consideram mais “safos” em relação àquilo que os meios de comunicação lhes fala.
Na semana que se encerrou, a final do MasterChef, da Rede Bandeirantes, suscitou uma discussão interessante acerca desta questão do “ao vivo”. Em virtude do sucesso retumbante do programa culinário, muito se debateu sobre a perspectiva do quanto havia de reality em uma atração que se anuncia como tal. Afinal, diferente de outros reality shows, como Big Brother Brasil, a competição não era ao vivo, mas gravada previamente sob contrato com os participantes e envolvidos, proibindo-os de divulgar os resultados. Em um mundo hipermidiatizado, isto tornou a experiência de assistir ao MasterChef como um exercício cotidiano de desviar dos spoilers que pipocavam por todos os lados.
Por outro lado, é possível argumentar que, na experiência televisiva com o entretenimento, não saber o que irá acontecer não é, necessariamente, um quesito primordial. Vide, por exemplo, as diversas revistas estilo Tititi e Minha Novela que, durante tantos anos, conquistam leitores ao dar spoilers de novelas (só a título de curiosidade: a página de Tititi no Facebook tem 5 milhões de seguidores). Alguém poderia dizer, com certa razão, que os próprios formatos das matérias jornalísticas começam sempre pela novidade, pelo “resultado” de um acontecimento (ou seja: pelo spoiler). O que nos leva a refletir, afinal, sobre as reclamações sobre as informações vazadas dos finalistas de MasterChef – os “furos jornalísticos” dos vencedores foram inclusive dados pela própria grande imprensa –, além do fato de que, a principio, tais “estraga prazeres” não afastaram os espectadores do programa.
Quiçá o que precisa ser debatido é a sensação de que as emissoras – e as empresas jornalísticas como um todo – não conseguem manter uma relação de transparência realmente transparente com o seu público.
O problema, portanto, talvez não esteja exatamente no spoiler, mas na desatenção ao quesito transparência com o público, requisição cada vez mais forte de uma população que se considera expert em mídia. Conforme analisou o crítico Maurício Stycer, ao tratar do episódio final (leia aqui), a Band errou não exatamente por não achar mecanismos melhores para brecar o acesso aos resultados do programa, mas por não ter sacado que manter uma relação transparente com os espectadores talvez fosse a melhor saída. “Gravado” e “ao vivo” misturaram-se de forma pouco clara e tornaram a final do programa uma espécie audiovisual de “jogo dos sete erros”.
Obviamente – e é aí que a coisa complica, e o tal domínio do público sobre as mídias possa talvez ser problematizado – a própria relação de transparência também pode ser forjada. É essa expectativa de transparência, por exemplo, que faz com que hoje tantos jornalistas assumam suas opiniões em público (pois “revelar o que eu penso” seria, acredita-se, uma forma de ser mais honesto com a plateia) e quebrem os protocolos de seriedade esperados a eles (a premissa de tirar a gravata sem perder a credibilidade, como diz o jornalista Celso Zucatelli, um dos profissionais mais sintomáticos da fusão entre jornalismo e entretenimento). Assume-se assim que, quanto menos “formal” for a transmissão, mais translúcida ela será.
É essa cobrança de transparência, por vezes, que requer que os “fazeres” do produto jornalístico sejam expostos ao público, inspirando elementos cênicos simbólicos, como o ato de exibir a redação trabalhando ao fundo da bancada de um telejornal, presente em quase todos os jornais televisivos hoje (quase como se a emissora dissesse: exibimos a cozinha em que a comida é feita e, deste modo, vocês podem ficar seguros que a higiene está sendo mantida).
Em outras palavras, o que as emissoras não se dão conta é que talvez não seja tanto o spoiler o problema que preocupa na televisão ao vivo, assim como não é a sisudez que acarreta um distanciamento indesejado dos espectadores. Quiçá o que precisa ser debatido é a sensação de que as emissoras – e as empresas jornalísticas como um todo – não conseguem manter uma relação de transparência realmente transparente com o seu público. Por medo, quem sabe, de perder um (pretenso) domínio da relação que mantêm com ele.
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