Desde os primeiros minutos de Vitória, um detalhe aparentemente banal se impõe como uma metáfora poderosa: durante um tiroteio, Nina deixa escapar das mãos uma xícara de valor sentimental, que se estilhaça no chão. Esse pequeno incidente doméstico torna-se um reflexo das tentativas da protagonista de restaurar não apenas sua própria segurança, mas também a ordem ao seu redor. Enquanto cola os fragmentos da porcelana, Nina busca igualmente remendar uma realidade despedaçada pela violência urbana. No entanto, assim como a xícara recomposta jamais volta a ser o que era, sua trajetória deixa marcas irreversíveis.
A observação dos eventos cotidianos faz parte da rotina, muitas vezes passando despercebida. No entanto, essa percepção se altera radicalmente quando o ambiente ao redor deixa de ser um mero cenário e se transforma em um elemento determinante da existência de alguém. Esse é o caso de Nina, interpretada magistralmente por Fernanda Montenegro. Sob a direção de Andrucha Waddington, conhecido por Eu, Tu, Eles e pela série Sob Pressão, o filme se baseia livremente em uma história real, uma referência amplamente destacada pelo projeto. É importante assinalar aqui que o longa começou a ser dirigido por Breno Silveira, que morreu em 2022, em meio às gravações. Ele é creditado como produtor.
A narrativa acompanha a jornada de uma aposentada que, por meio de registros audiovisuais feitos da janela de seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, desmantela uma rede criminosa composta por traficantes e policiais. Com o suporte de um jornalista investigativo, ela enfrenta os riscos e ameaças inerentes a essa empreitada, expondo uma realidade brutal.
A presença de Fernanda Montenegro em um filme inédito sempre gera grande expectativa, e, aos 95 anos, sua atuação em Vitória é profundamente comprometida e multifacetada. Seus gestos e inflexões vocais carregam marcas do tempo, mas essas características, longe de limitar sua performance, acrescentam camadas de autenticidade. A atriz transita com fluidez entre momentos de humor e tensão, demonstrando controle absoluto sobre a construção da personagem.
‘Vitória’: cotidiano e violência sistêmica
Ao incorporar uma idosa confrontada com a violência sistemática do seu entorno, a protagonista desafia a passividade de seus vizinhos e questiona a inércia das autoridades. No entanto, a interação com os demais personagens nem sempre atinge o mesmo grau de naturalidade. Algumas interpretações resvalam em estereótipos, como o síndico conservador, impactando a complexidade da trama.
Fernanda, contudo, compensa qualquer desequilíbrio com uma comunicação silenciosa e expressiva. Seu olhar, seus passos hesitantes ou determinados transmitem emoções que o diálogo nem sempre explicita. O filme também aborda a marginalização da terceira idade, evidenciando tanto o descaso da sociedade quanto o peso da solidão e do medo em uma cidade dominada pela violência.
O filme também aborda a marginalização da terceira idade, evidenciando tanto o descaso da sociedade quanto o peso da solidão e do medo em uma cidade dominada pela violência.
A presença de Linn da Quebrada, no papel da cabeleireira trans Bibiana, vizinha de andar da protagonista, é outro trunfo. A interação entre ela e Nina proporciona belos momentos ao filme, como a sequência em que as duas vão a uma festa dançante em um bingo.
A construção visual de Vitória remete inevitavelmente ao clássico Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock. Assim como o personagem de James Stewart, Nina utiliza sua posição privilegiada para observar e registrar eventos suspeitos.
No entanto, ao contrário do suspense hitchcockiano, em que há um mistério a ser desvendado, Vitória se insere em uma realidade onde os crimes ocorrem à luz do dia, sem a necessidade de uma investigação elaborada. O tráfico de drogas, os homicídios e o recrutamento de menores para o crime são acontecimentos corriqueiros e ostensivos.
O filme também evoca O Outro Lado da Rua, estrelado por Fernanda Montenegro e dirigido por Marcos Bernstein (roteirista de Central do Brasil), lançado em 2004. Na trama, a protagonista também vive em Copacabana e se torna informante da polícia, denunciando casos de violência ao seu redor.
Thriller policial
Quando Nina decide intervir, a narrativa de Vitória se desloca da dramédia inicial para um thriller policial. A ambientação se mantém rica, com a fotografia capturando a transformação do apartamento da protagonista: de refúgio aconchegante a espaço claustrofóbico e tenso. A dinâmica entre Nina e Marcinho (Thawan Lucas), um menino da comunidade vizinha, confere ao filme um de seus eixos emocionais centrais. O garoto, que inicialmente apenas presta pequenos favores para a protagonista, gradualmente se torna uma de suas poucas companhias.
Vitória se sustenta, sobretudo, na força de sua protagonista e na potência de sua história real. Embora tropece em alguns clichês, o longa permanece envolvente e relevante. Fernanda Montenegro, como sempre, transcende o material que lhe é oferecido, presenteando o público com uma performance que ressignifica cada cena em que aparece. No fim, Vitória não é apenas um filme sobre coragem individual, mas sobre o peso das escolhas diante de uma sociedade que frequentemente escolhe não ver aquilo que acontece sob sua própria janela.
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