As noites frias de ultimamente têm me lançado ao passado. Não consigo ainda compreender, ou racionalizar, o motivo desse arremesso temporal. Pode-se culpar o excesso de vinho, bebida a qual não andava me dedicando tanto, que guarda em sua cor o gosto da juventude que teimo em perseguir e que, a cada passo, distancia-se mais do corpo e da mente já surrados por minha própria história. Alguns podem também dizer que a obsessão pelo próprio passado, e por consequência por uma juventude que já se esgotou, seja uma forma de compensar e sublimar a inevitável e cruel ação do tempo. Outros ainda poderão simplesmente achar natural, e até certo ponto inevitável, revisitar os próprios tropeços. A verdade é que tal qual um relâmpago, a memória se apossa de mim e, sem perceber, o arrebol de meu caminhar pelo mundo surge no reflexo do taco da sala onde os dias me consomem pouco a pouco. Eternos amigos que hoje não passam de amargas lembranças, aquele velho poema empoeirado nunca declamado, os amores jamais experimentados e as dores tatuadas à faca na pele desbotada são, nas noites frias, companheiros de uma batalha psíquica perene.
Nesse ir e vir pelo tempo, acabei revisitando alguém que já não reconheço no espelho. Aquele garoto de sorriso aberto que carregava uma crença inabalável no amanhã. Um menino já há tempos desaparecido, perdido nas ocorrências frustrantes de um destino em desatino, jogado à sua própria sorte, à deriva, como todo ser humano pelos descaminhos da vida. Pois foi esse garoto quem, meio a contra gosto, me tomou de assalto em estado de vigília e, num descompasso terrível, arrastou-me pelos paralelepípedos mortos de uma cidade atordoada em busca do florescer do teatro que palpita em crise no peito do já cambaleante artista que, por aqui, se dá ao luxo de entortar algumas linhas. De mãos dadas come essa criança de olhos em brasa e instinto animal, resolvi voltar às origens de minha militância artística: o sarau!
O sarau guarda em si toda a liberdade necessária à potência do verso. Em um mundo cada vez mais individualista, onde o mercado transforma seres em cifras e busca incansavelmente a supressão do sentimento coletivista, é de se louvar, e abençoar, aqueles que acreditam na força de um microfone aberto aos ventos e almas elétricas pulsando descontentamento e esperança. Salve o “Sarau da Dalva”! Aurora campineira, vinda do mato, do abaeté, do cangaço e do “anfíbico” modernismo de Manuel Bandeira a coaxar diante de nossa retina traiçoeira que teima em balançar levada pelo copo espesso de cerveja no Bar do Mané.
O sarau guarda em si toda a liberdade necessária à potência do verso. Em um mundo cada vez mais individualista, é de se louvar, e abençoar, aqueles que acreditam na força de um microfone aberto.
Amordaçado em São Paulo, ao lado do poeta que desconhece o asfalto, tomei a São João no ato de meu descaso e versei a vida de Zelda Fitzgerald. Bombardeio poético, recusa métrica. Uma meretriz passa os olhos por minha face abjeta. Ela tem os olhos claros feito neve e um olhar de quem não se entrega nem mesmo diante do carrasco da segunda-feira. Nojo! O mesmo nojo de Beso, que nos traços de Matias Picón insuflou meu desejo de amor e desespero diante do caos. Nu, em pelo, em pleno Bar do José, o Zé, que guarda o sorriso de James Dean ao lado do drink de Lennon. Pink Lemonade no deserto! Belchior arranca a própria cueca para declamar versos ao som de guitarras místicas, infinitas. Salve a urbana cultura do Sarau!
Se você quiser, eu danço com você. Meu nome é liberdade, é libertação, e trago nos seios o antídoto da lei, uma embarcação contra o tédio nosso de cada dia. Uma ode à rebeldia. Um coração banhado em lágrimas e ousadia. Uma simples forma de resistência. A demência alucinada que sobrevive em versos, que se reconhece em palavras soltas ao vento e que insiste no tilintar da existência mesmo a descontento. O sarau, que sobrevive por conta de aparelhos, é a saída de um mundo modorrento. É a poesia , o teatro, a vida que permanece viva apesar do desalento maldito dessa maldita monotonia. O sarau não passa de um cantar, e é assim, cantando, que espero vencer o tempo.
Que aquele menino, hoje tão sumido, não me esqueça e que diante de sua face ainda sadia, corada, eu pelo menos aprenda o significado da brigada artística que encharca meus áridos dias. Encharquei-me de poesia e, sem perceber, acabei naufragado de vida.
Por obséquio, estraçalhem os coletes salva-vidas.