“Eu não quero ser um adulto chato, parte de uma engrenagem no sistema”, reclama a mocinha de um seriado do Netflix, um pouco antes de roubar um tapete de uma loja. A série é inspirada em uma história real e não é a história de uma criminosa, ao que parece, embora eu consiga imaginar como a coisa teria facilmente descambado para esse lado depois do primeiro tapete. A vontade de não se tornar uma engrenagem no sistema – e a subsequente atitude necessária para isso – deve ser um paroxismo do pensamento liberal do Ocidente, mas o meu coração soviético sabe que não há nada a fazer no momento. Então eu carimbo, rubrico, xeroco, carimbo de novo, depois empilho e arquivo.
A vontade de não se tornar uma engrenagem no sistema – e a subsequente atitude necessária para isso – deve ser um paroxismo do pensamento liberal do Ocidente, mas o meu coração soviético sabe que não há nada a fazer no momento.
Alguns grandes poetas brasileiros foram funcionários de escritórios e, como tal, escreveram melancólicas elegias a essa função robotizadora da prestação de serviços. “E os arquivos, Carlos/ As caixas de papéis:/ Túmulos para todos /Os tamanhos de meu corpo”, escreveu João Cabral de Melo Neto que, assim como eu, sabe o desânimo de uma sala gelada tomada por armários de metal. “Eu sou triste como um prático de farmácia,/ sou quase tão triste como um homem que usa costeletas./ Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher/ mas só ouço o tectec das máquinas de escrever”, se queixou Murilo Mendes sem cogitar roubar tapetes.
A realização profissional é um conceito criado por artistas e, como quase tudo criado por artistas, adaptado e cooptado para a vida comum. Mas não passa de ilusão, slogan que a memória martela até a hora de bater o ponto. A distância das férias coloca as coisas em perspectiva e realça o sabor amargo daquilo que se engole como remédio amargo o ano inteiro. Não se pode roubar tapetes em Murmansk, a não ser que prefira que a nomenklatura reja o seu destino. Para além do espírito de liberdade, há o dinheiro. E se o dinheiro é a única liberdade possível, é melhor não se iludir.
Melhor continuar carimbando.