O primeiro livro de Corpo de Baile, trilogia rosiana que antecede o clássico Grande Sertão: Veredas, é Manuelzão e Miguilim. Composto por duas novelas, cada qual abordando uma extremidade da vida, o volume resulta em um dos mais apreciáveis e impactantes trabalhos de João Guimarães Rosa, revelando personagens tanto humanas quanto inesquecíveis.
A novela de início, “Campo Geral”, conta a singela história do menino Miguilim, que vive no Mutúm com sua grande e pobre família. Dentre seus irmãos, aquele com quem tem uma relação mais próxima e profunda é Dito, figura fundamental como motivo e estimulante à narrativa e à formação do protagonista.
Acompanhamos a fase infante de Miguilim e as descobertas que conduzem esse período. Através de seus olhos, revisitamos episódios corriqueiros como se nos deparássemos com eles pela primeira vez. Menino ainda pequeno – mas com sensações já imensas –, o herói da novela conhece a traição, os males da infidelidade e os inevitáveis conflitos interpessoais, perdendo sua inocência conforme tenta entender quem é, enquanto compreende a influência do outro sobre sua própria personalidade.
Miguilim e Dito, sempre juntos, deslumbram-se com o infinito de possibilidades que o futuro reserva, mas de modos diferentes. Enquanto Dito é seduzido pelo mundo de gente grande, gosta de observar e fazer parte dele, Miguilim teme crescer e perder algo essencial que não consegue ver nos adultos: “Dito fazia companhia, falava que carecia de ir ouvir as conversas todas das pessôas grandes. Miguilim não tinha vontade de crescer, de ser pessôa grande, a conversa das pessôas grandes era sempre as mesmas coisas secas, com aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas”.
Isso não impede, porém, que ele admire a sabedoria amadurecida do irmão, grande conhecedor dos terrenos humanos. Miguilim vê em Dito a fusão da meninice que tanto valoriza e a maturidade que falta na infância. Espelhando-se no caçula, confia totalmente nele, em sua intuição e em seus conselhos, muito mais do que em si mesmo: “O Dito menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia, espiava na dúvida, achava que podia ser errado. Até as coisas que ele pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade”.
A predisposição de Dito para enxergar bem as coisas, e mais, enxergar o bem das coisas, rende a “Campo Geral” algumas das frases-conselhos mais belas e reverberantes da obra de Guimarães Rosa, espécies de lemas que acompanham os leitores por muito tempo depois da leitura finda: “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!…”.
A predisposição de Dito para enxergar bem as coisas, e mais, enxergar o bem das coisas, rende a ‘Campo Geral’ algumas das frases-conselhos mais belas e reverberantes da obra de Guimarães Rosa.
Em meio à tanta beleza, a morte surge com um papel primordial na novela. Primeiro, como elemento figurado: o findar da infância, o transformar-se em adulto, o ganho de responsabilidades e a perda da mágica visão infantil assustam Miguilim e o levam a flertar com a ideia da morte real. Morrer fisicamente significa, para ele, um escape. Expirando ele jamais deixaria de ser criança, de ver o mundo como o mistério que ele é, imperceptível a quem já cresceu.
Depois, a morte passa a ser uma ameaça real que Miguilim é obrigado a enfrentar, assim como todos nós somos. Esse embate, dado contra um inimigo inexplicável, desconhecido e súbito, manifesta a verdadeira vocação do menino: contar histórias.
Miguilim refugia-se no narrar, tem na narrativa sua fortaleza. O menino demonstra ser um contador de histórias nato porque precisa delas para viver, suportar os pesos da vida e a impiedade da morte. Seu fascínio pelos contos exprime, também, sua dificuldade em se desprender. Contando estórias ele as perpetua, as reproduz, mantém os causos, seus personagens e lugares vivos, intocáveis pela morte que ele não aceita.
Essa sensibilidade do garoto parece destoar da brutalidade e da rudeza do sertão, mas aos poucos mostra-se, na verdade, complementar a elas. O convívio harmonioso entre o bruto e o sensível é que torna o sertão de Guimarães Rosa assaz rosiano, tão identificável e singular.
Tal complementaridade faz parte, também de “Uma estória de amor (festa de Manuelzão)”, segunda novela do livro, onde tudo começa pequeno, mínimo, quase insignificante. Ao contrário de Miguilim, criança que sempre viveu no Mutúm e desconhece as coisas grandes do mundo, Manuelzão, já em idade avançada, passara a vida viajando pelos sertões, até se estabelecer na Samarra, decidindo lá habitar e preparar uma festa. A festa de Manuelzão é responsável por reunir, em pequeno espaço, vasta gama de personagens representativas do numeroso povo sertanejo.
Manuelzão corresponde ao oposto do que é Miguilim. Ele é modelo da velhice e ávido ouvinte de causos. Para ele, “as estórias – tinham amarugem e docice. A gente escutava, se esquecia de coisas que não sabia”. Escutar estórias supre em Manuelzão a falta substancial preenchida por Miguilim ao contá-las. Embora assumam funções distintas em relação às narrativas, para ambos elas apresentam uma magia incomparável e necessária.
Certamente não haveria Manuelzão ou Miguilim, do modo como são, em outro lugar que não no sertão indiscutivelmente bem recuperado e reformulado por Rosa, mas acima de tudo, não haveria nenhum dos dois se não existissem as estórias e o encantamento que elas causam. Manuelzão e Miguilim é, acima de tudo, uma ode do narrador roseano à própria narrativa, afinal, para ele “narrar é resistir”.
MANUELZÃO E MIGUILIM | João Guimarães Rosa
Editora: Nova Fronteira;
Tamanho: 216 págs.;
Lançamento: Outubro, 2008 (11ª edição).