Lançado em 1957, na França, De Castelo em Castelo (Companhia das Letras, 2004, tradução de Rosa Freire d’Aguiar) é um romance narrado em primeira pessoa, cujo protagonista relata sua partida da França momentos seguintes ao final da Segunda Guerra Mundial.
A obra pode ser divida em dois blocos, sendo o primeiro momento a fuga do escritor para Alemanha. Com a queda do III Reich, Céline é obrigado a fugir para Dinamarca junto com a mulher Lucette e o gato Bébert. No segundo bloco, a narração foca o retorno do exílio do protagonista, que passa a viver nos subúrbios de Paris.
Sem dúvida, trata-se de uma narrativa que pode ser lida como um romance autobiográfico ou uma confissão, uma vez que o protagonista da ação é o próprio Louis-Ferdinand Céline. Nela é possível notar uma intersecção entre vida e obra, a conformação da história e da ficção, do objetivo e do subjetivo, operando através de uma linguagem marcada pela influência da oralidade e pelo uso de reticências…
Desde o surgimento de seu primeiro romance, Viagem ao fim da Noite (1932), considerada um marco na literatura do século XX, Louis-Ferdinand Céline utiliza muitas passagens de fundo autobiográfico. Esse recurso também é utilizado em vários momentos em De Castelo em Castelo, como atesta o trecho inicial da obra: “Para falar francamente, cá entre nós, estou terminando ainda pior do que comecei… Ah!, não comecei nada bem… nasci, repito, em Courbevoie, Sena… repito pela milésima vez… após inúmeras idas e vindas estou mesmo terminando muito mal… tem a idade, você me dirá… tem a idade!… tudo bem… aos 63 e picos, é dificílimo recomeçar a vida… refazer a clientela…” (p. 11).
Como é sabido, o autor de Morte a Crédito (1938) passou os últimos anos de sua vida em estado de penúria, em função do confisco de seus bens, como pena por seu envolvimento com a Ocupação nazista na França. Após o retorno ao seu país de origem, Céline voltou a exercer a medicina, atendendo a uma clientela pauperizada, como a personagem madame Niçois, sua velha paciente em De Castelo em Castelo.
Entusiasta do colaboracionismo com o Governo de Vichy, Louis-Ferdinand Céline foi condenado à morte no fim da 2ª Guerra Mundial, mas conseguiu fugir para Alemanha, sendo abrigado pelos nazistas no castelo de Sigmaringen, na Baviera, lugar que reunia “a fina flor do colaboracionismo”.
Junto a Céline encontravam-se figuras do primeiro escalão do Governo de Vichy, como o marechal Philippe Pétain, Pierre Laval e outros sequazes. Esses e outros representantes de Vichy foram recriados e satirizados em De Castelo em Castelo.
A sensação de perseguição constante é relatada por um narrador exaltado, irônico, sarcástico, à beira de um ataque de nervos. Uma das características do protagonista é sua obsessão por dinheiro e sua denúncia constante do estado de miséria a que estavam sujeitos. Situações de caos como os bombardeios e a destruição de cidades alemãs durante a guerra, o rancor e o ódio do narrador contra parte da intelligentsia da época, sua repulsa por escritores como Sartre (pejorativamente chamado de Tartre, em francês, tártaro) e Louis Aragon; editores e críticos como Gaston Gallimard e Jean Paulhan; políticos e pintores como Maurice Thorez e Pablo Picasso, são acompanhadas de passagens construídas com alto teor de troça e zombaria, como a descrição da situação deplorável dos banheiros dos albergues, que acolhiam toda sorte de refugiados e colaboracionistas em fuga.
“Todo o vestíbulo, toda a escada ficavam apinhados dia e noite de gente que não se aguentava mais, injuriosa, reclamando que aquilo era uma vergonha!… que estavam fartos de sofrer!… que estavam fazendo nas calças!… que estavam apertados!… e era verdade: ficava tudo escorrendo pela escada!… e o nosso corredor, nem se fala! e o nosso quarto! não dá pra imaginar nada mais laxante que o Stamgericht, rábanos e repolho roxo… Stamgericht mais a cerveja ácida… é de nunca mais sair dos WC!… nunca! Imagine todo o nosso vestíbulo resmungando peidando que não se aguentavam mais!… e os cheiros!… as latrinas transbordavam!” (p. 197).
Entusiasta do colaboracionismo com o Governo de Vichy, Louis-Ferdinand Céline foi condenado à morte no fim da 2ª Guerra Mundial, mas conseguiu fugir para Alemanha, sendo abrigado pelos nazistas no castelo de Sigmaringen, na Baviera.
Visto ainda hoje como um escritor maldito, Louis-Ferdinand Céline voltou a ser alvo de polêmicas na imprensa francesa, após o anúncio feito pela editora Gallimard, que pretendia publicar seus panfletos antissemitas escritos entre 1937 e 1941: Bagatelles pour un Massacre (1937), L’École des Cadavres (1938) e Beaux Draps (1941), que defende abertamente a perseguição e eliminação de todos os judeus da Europa.
O anúncio da publicação desses escritos despertou a indignação de vários setores da sociedade. O próprio autor, antes de morrer, pediu que os livros não voltassem a ser publicados. Em carta dirigida à Agência France-Presse (AFP), Antoine Gallimard, presidente da editora, declarou: “Em nome da minha liberdade de editor e da minha sensibilidade, suspendo este projeto, na convicção de que não estão reunidas as condições metodológicas e memoriais para poder encará-lo serenamente”.
Um dos trunfos de Céline é a criação de um estilo habilmente talhado, uma prosa que estiliza ao máximo o uso comum da linguagem popular, utilizando gírias para produzir efeitos de oralidade que logo influenciaram escritores como Jack Kerouac, William Burroughs e Henry Miller. No entanto, Céline continua a ser um tema incômodo. O espectro que paira em torno de seu nome, seu deplorável envolvimento com o nazismo e seu antissemitismo exacerbado – fatos no mínimo imperdoáveis – convivem ao lado da originalidade de seu estilo e da grandeza de sua obra, que continua sendo um vigoroso grito de revolta face à condição humana.
DE CASTELO EM CASTELO | Louis-Ferdinand Céline
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Rosa Freire d’Aguiar;
Tamanho: 440 págs.;
Lançamento: Julho, 2004.