Bogdan Czaykowski (1932-2007) foi um poeta errante. Nasceu numa cidade que hoje seria a Ucrânia, mas, à época, era Polônia (as fronteiras mudam demais naquela parte do mundo). Em 1940, o governo soviético enviou sua família para o interior. Passou por vários lugares, como a Sibéria e o Turcomenistão. Chegou, por fim, já órfão, à Índia, onde esboçou seus primeiros poemas, além de uma tradução do Gitanjali, de Rabindranath Tagore.
Com este background, cheio de paisagens e línguas tão distintas, pode-se fazer uma leitura (algo genérica, é verdade) do poema “Revolta em verso”, de sua autoria, traduzido por Aleksandar Jovanović na preciosa antologia Céu Vazio: 63 poetas eslavos, publicada pela Hucitec, em 1996.
Reproduzo o poema:
“Revolta em verso”
“Nasci lá.
Não escolhi o lugar.
Bem que poderia ter nascido apenas sobre a relva.
Relva nasce em toda parte.
Somente os desertos não me aceitariam.
Ou poderia ter nascido num fuso de vento
Onde o ar repousa.
Nasci lá porém.
Acorrentaram-me ainda criança
E depois lançaram-me no mundo com as correntes.
Aqui estou. Nasci lá.
Se ao menos tivesse nascido no mar.
Ferro magnético,
Que sempre me coloca na direção do polo,
Você é pesado; sem você sou tão leve
Que perco a sensação de meu peso.
Assim vou carregando as correntes
E sacudo-as como um leão faz com a crina.
E as pessoas de lá gritam:
Retorna.
Chamam-me: tá, tá, tá.
Trigo com joio ao vento.
Cão, para o canil.
Eu sou poeta (é preciso ter um nome).
A língua é minha corrente.
As palavras são minha coleira.
Nasci lá.
Bem que poderia ter nascido apenas sobre a relva.”
O poeta, filho de sua época, época de grandes deportações, “época política” (diria Szymborska), rebela-se contra seu destino errante?
Não!
Bons poemas se leem de vários modos (outro grego se vira em seu túmulo).
O poeta quer se rebelar contra a própria língua. Mas há saída além da língua? Desde Saussure, a quem se atribui a paternidade da linguística, a língua foi desnudada: é algo terrível do qual, mesmo se você conseguir escapar, terá escapado apenas para um lugar ainda mais dentro de seus domínios.
É com a língua que damos sentido ao mundo (e também é com a língua que dizemos o que não tem sentido…). A frase inicial do poema, entre o lamento e a ira, diz “nasci lá”. Lá pode ser sua Równe natal, hoje em dia Rivne, mas também pode ser ter nascido humano, condenado à língua.
Poeta é um amontoado de sons a que damos determinado sentido. Sentido linguístico. Podia ser cão, relva, ser marítimo, mas Czaykowski foi justamente nascer humano. Poeta. Longuíssimas, intermináveis discussões já foram feitas sobre este termo e, pior ainda, sobre poesia. Czaykowski nos faz lembrar de que isto é apenas um nome.
Grego antigo: ποιητής (poietés). Significava uma coisa mais simples: alguém que faz, um fazedor. Na época de Platão (o mundo é antigo…), a coisa já tinha se complicado e, não satisfeito, o filósofo resolveu expulsar os poetas de sua República ideal.
A leitura que faço deste poema é que todos os humanos somos poetas porque “condenados” às amarras da língua e, de alguma forma, criamos com ela: nem que seja uma lista de compras…
Afora ser deportado para a Sibéria com 8 anos, esta “prisão metafísica” é motivo para justa revolta.
Bons poemas se leem de vários modos (outro grego se vira em seu túmulo). Tal afirmação não invalida o fato de haver interpretações melhores do que as outras. Porém, ao ler poesia, literatura, temos em mãos não uma declaração de intenções (aliás, tenhamos em mente que a “intenção do autor” há tempos foi relegada a segundo plano), mas um campo repleto de possibilidades. Vale para a poesia, vale para a literatura, vale para o mundo e deve-se sempre lembrar disso em tempos que os autodeclarados donos da verdade saem por aí com suas arengas de péssimo gosto.