Já mencionei várias vezes nessa coluna que o sucesso extraordinário de RuPaul’s Drag Race se dá porque ele vai muito além de um reality show competitivo. De fato, a sacada do programa está na criação de universo específico, no qual todos cabem e no qual Ru se apresenta como uma mãe dura, mas carinhosa, que abraça os “filhos” (incluindo aqui participantes e espectadores) com frases espirituosas do tipo “If you don’t love yourself, how in the hell you’re gonna love somebody else?” Por isso, RPDR é uma espécie de programa perfeito: tem competições, novidades, repetição e personagens para se gostar e se desgostar a cada temporada.
Se a fórmula é tão boa, então por que o spin-off RuPaul’s Drag Race All Stars – que é uma espécie de repescagem com as “melhores perdedoras” que entraram no programa, mais ou menos como faz A Fazenda ao recuperar participantes do Big Brother Brasil – é meio sem graça? Ano passado arrisquei uma resposta a essa questão: provavelmente tinha a ver com algumas questões de escalação de elenco, com uma dificuldade de extrair o melhor de participantes conhecidas sem cair na repetição chata e, sobretudo, por um método de eliminação totalmente inconsistente em que boas competidoras acabam caindo fora quando estão no auge. No All Stars 4, por exemplo, o resultado foi pífio – e a temporada encerrou num frustrante empate entre duas drags, quase como se a competição estivesse se esvaziado.
No entanto, para nossa sorte, reality show não é fórmula pronta, e neste ano tivemos boas experiências com RPDR All Stars 5. Como sempre, um programa desse estilo, quando começa, depende muito de uma boa montagem de elenco. Embora alguns nomes tenham, pelo menos na minha leitura, decepcionado (como Mayhem Miller, algo inexpressiva, e Mariah Balenciaga, que me parece mais bonita que talentosa), houve o resgate de nomes marcantes na temporada, como Derrick Barry (conhecida por ser sósia de Britney Spears e constantemente desafiada para romper com seu “clone”) e Blair St. Clair (uma drag novinha e que retornou quase irreconhecível pelos procedimentos estéticos).
Além disso, RuPaul continuou fazendo jus ao projeto de resgate a participantes das primeiras temporadas, que supostamente não pegaram a “onda” RPDR e, por isso, tiveram menos oportunidade que as mais recentes. Assim, o programa trouxe a carismática Ongina, da primeira temporada, e Alexis Matteo (uma das primeiras drags a criar um bordão para si) e India Ferrah (mais famosa por um episódio constrangedor vivido com outra drag, Mimi Imsfurt, num lipsynch), ambas da temporada três.
Como sempre, o quesito repetição se fez presente nas competições, que são sempre as mesmas – tanto nós quanto as participantes já sabemos o que esperar, e sobreviver a um episódio é a chance de mostrar mais uma faceta de um talento. A novidade, é claro, se encontra nas tramas humanas que são tecidas quando estas drags se (re)encontram, e muitas vezes, jogam em pratos limpos os dramas antigos.
Neste All Stars, as jornadas foram individuais. Cada participante estava lá em busca de provar algo para si mesma.
No All Stars 5, o drama se centralizou sobretudo nos conflitos causados por India Ferrah, que já entrou como rival de Derrick Barry, num episódio não muito bem explicado, mas que envolve fofoca e maledicência via internet. Em um resultado talvez injusto, Derrick foi a primeira eliminada, e não conseguiu superar seu “carma” de “Britney impersonator”, como se não tivesse uma personalidade própria (e suas falas acerca dessa cobrança, em apenas um episódio, foram muito tocantes).
India ainda se envolveu num drama de diz-que-diz-que com Alexis Matteo, acusada em tentar fazer alianças para derrubar Shea Coulée, enxergada desde o início como o grande favorita – e, de fato, Shea se sagrou a grande vencedora do All Stars. Embora esses conflitos gerados por tramoias entre participantes não tenham lá grande novidade (e no fim, nunca se esclareceu se Alexis tinha mentido ou não para Shea), pelo menos trouxe uma trama viva para uma temporada em que os principais conflitos foram os internos.
Ou seja, nesse All Stars, as jornadas foram individuais. Cada participante estava lá em busca de provar algo para si mesma: Derrick precisava provar que não era Britney, Ongina precisava mostrar fazer jus às participantes mais novas, numa competição muito mais intensa do que a que ela participou, Blair precisava se mostrar uma artista adulta e completa. India precisava provar que curou seus demônios internos. Miz Cracker, de personalidade algo problemática, precisava sair de dentro da própria cabeça e concentrar-se mais em seus talentos. Obviamente, todas essas tramas, que foram mais ou menos desenvolvidas, eram atraentes.
Mas sem dúvida, a melhor trama deste ano foi a que nos trouxe a vencedora. Shea Coulée enfrentava um drama particular, com uma configuração bem específica. Participante da temporada 9, Shea foi uma exímia competidora, e tudo indicava que ela seria a nova rainha. No entanto, a apresentação apoteótica de Sasha Velour, uma “azarona” na competição (pois Sasha configurava um estilo arrojado bastante inovador em sua época) fez com os que os sonhos de Shea, forjados a trabalho duro, se esfacelassem. Numa performance história no lipsynch final da temporada 9, Sasha levantou sua peruca e o palco se inundou por uma chuva de pétalas de rosas.
A cena se tornou icônica – e Shea, o segundo lugar, ficou eternamente vinculada a uma frustração e a uma vergonha. Como lidar quando você faz tudo certo e, mesmo assim, não sucede naquilo que você almeja? Em que acreditar depois de um tombo desses? A experiência de Shea (completamente familiar a todos nós) fez com que sua trama de redenção se tornasse irresistível. Durante o programa, a drag revelou que se tornou alvo de piadas por fãs do programa, que jogavam pétalas nela e evocavam o tempo todo o seu fracasso. Shea precisava superar o trauma da perda, por ela e por nós.
Recompensados, a temporada All Stars 5 se encerra com mais um acerto: um novo modo de eliminação agora traz, a cada episódio, um duelo entre a vencedora e uma lipsynch assassin, que é mais uma participante antiga que vem “duelar” com as competidoras. E assim, temos mais um gostinho de rever e torcer para nossas drags favoritas. E assim, sempre imprevisível em sua previsibilidade, RuPaul’s Drag Race segue sendo uma franquia midiática capaz ainda de nos ofertar boas doses de entretenimento.