A prisão do ex-bilionário Eike Batista, ocorrida na semana passada, chamou a atenção por motivos bastante inusitados, e que merecem alguma reflexão acerca da participação do jornalismo no episódio. A começar pelo fato de que esta condenação serviu com uma espécie de “cereja do bolo” nos demais acontecimentos atrelados aos desdobramentos da Operação Lava-Jato – em especial no que nos parece ser uma grande limpeza na vida dos ricos e poderosos que, até então, eram retratados como pessoas acima da lei (diz uma famosa expressão popular: no Brasil, a cadeia só existe para os três “pês”: preto, pobre e prostituta).
Ou seja, a esperada prisão de Eike se tornou um acontecimento irresistível a todos nós – e, em consequência, trouxe muito material para uma cobertura jornalística. Talvez tenha sido, até o momento, a prisão que mais rendeu reportagens peculiares dos veículos televisivos, que utilizaram uma série de estratégias bizarras para, supostamente, trazer catarse à população que se sentiria, de certa forma, vingada pela “prestação de contas” com alguém que foi tão poderoso. O resultado do uso de tais recursos foi uma audiência espetacular às emissoras.
A cobertura começou com tons detetivescos pelo fato de que o empresário era considerado foragido, uma vez que havia embarcado para Nova York ao ter sua prisão determinada pela justiça. Como vivemos em um mundo coberto por câmeras, logo surgiram os registros de Eike fazendo check-in – tranquilamente, como um passageiro qualquer!, nos “dizem” as imagens, incitando nossa indignação – no Aeroporto do Galeão, os quais foram intensamente replicados por diversos veículos jornalísticos. Um enredo estava tramado, com todos os teores de vingança e de perseguição, além de um incontestável toque de humor e escárnio, que sempre acontece quando vemos poderosos sendo execrados publicamente.
O que mais chama a atenção é o que levou a esta torcida coletiva pela queda de Eike Batista em cadeia nacional: o fato de que, muitos anos antes disso, a figura do empresário foi construída midiaticamente como símbolo de diversos valores, sobretudo os atrelados ao mundo capitalista. Eike veio aos holofotes como uma espécie de celebridade bilionária, um self-made man (embora provenha de família tradicional – seu pai foi presidente da Vale do Rio Doce), um símbolo do empreendedorismo que deveria se tornar o ideal de todo brasileiro.
Isso se consolidou por meio das revistas de fofoca (ficou famoso pelo casamento com a atriz Luma de Oliveira, que desfilou em um carnaval com uma coleira com seu nome) e de revistas semanais de grande circulação, como Veja e Época. Ao analisar a representação midiática do “bilionário popstar”, os pesquisadores João Freire Filho e Mayka Castellano anotaram que as matérias sobre o fenômeno Eike enfatizavam uma “natureza pedagógica” ao seu sucesso: “com sua triunfal estratégia de produção da riqueza, Eike rechaçava um arraigado vício de conduta do empresariado nacional, provando que é possível empreender e progredir sem a ajuda do Estado”. Em outras palavras, a prosperidade de Eike ressaltava à população: só é pobre quem quer (ou não se esforça o suficiente para não ser).
Há, durante toda a cobertura da prisão de Eike, um estranhamento proporcionado pelo discurso confuso, algo esquizofrênico, que mistura a celebridade, a devassa de sua intimidade, o símbolo empreendedor, e o tom demagógico de vingança dos brasileiros.
Mas logo outro elemento, tão interessante quanto, foi agregado à persona midiática de Eike: o fracasso, a perda de sua fortuna, colocando-o como um objeto coletivo de escárnio. Quem acompanha a cobertura da Lava-Jato sabe que este tom da narrativa é bastante típico quando há entre os condenados políticos ou empreiteiros, sempre destacando a vida dura que agora é a realidade daqueles que viveram luxuosamente até então. Aceitemos ou não, existe aqui uma lógica semelhante à do pensamento de extrema direita do “bandido bom é bandido morto”, ou seja, da ideia simplória de que a vingança ou o sofrimento funcionam como um sistema que corrige os que romperam as regras sociais, ao invés de torná-los mais tortos ainda.
Neste contexto, a prisão se torna o grande clímax desejado à narrativa de ascensão e queda de um mito, e se destacam as formas pelas quais os veículos jornalísticos – em especial, os de televisão – lidaram com ela. Vejamos, por exemplo, a cobertura de dez minutos feita pelo Jornal Nacional, totalmente atípica, e na qual a participação do acusado foi fundamental. Eike estava em Nova York, e o repórter Felipe Santana, correspondente da emissora na cidade, foi deslocado para fazer a cobertura e acompanhá-lo na volta ao Brasil. A reportagem se inicia filmando Eike no aeroporto enquanto se prepara para o retorno. O repórter narra, por cima das imagens: “ninguém imaginava que ele fosse chegar sozinho, e muito menos três horas antes do voo. Passou pela segurança como se nem fosse um foragido internacional, e ficou na área de embarque comum, mesmo tendo um bilhete executivo”.
Há algo de profundamente estranho em toda a condição de produção desta reportagem. O repórter que acompanha Eike usa, de certa maneira, uma estratégia emprestada do registro amador: os enquadramentos não são tão típicos do Jornal Nacional, a imagem não tem tanta qualidade (pode ser que, na corrida do acontecimento, a câmera fosse mesmo não-profissional). Na passagem (quando o repórter aparece em cena), está na frente do empresário, quase como se produzisse uma selfie com ele – reproduzindo, de certa forma, a lógica das celebridades, como se o próprio jornalista estivesse “posando” junto com uma pessoa famosa.
Mas talvez o mais bizarro de tudo, e que não consegue ser esclarecido meramente assistindo à reportagem, é a negociação que deve ter ocorrido entre a Globo e Eike Batista. Refiro-me ao fato de que Eike topa falar ao repórter do Jornal Nacional e, mais que isso, aceita ser acompanhado durante o voo. Sua fala é, obviamente, performática (está sereno, tranquilo, ou ao menos tenta se apresentar assim), e destaca a importância da Lava-Jato mesmo que ela o atinja. Há um enigma no porquê Eike fala tão calmamente a um jornalista: talvez por ser a Globo, e por ele querer certo controle da situação (o que nem sempre dá certo, conforme já discutimos nesta coluna); talvez para dar a impressão de que não deve nada ao governo; talvez por ser vítima da própria vaidade e do vício nos holofotes midiáticos.
Já durante o voo ao Brasil, ele surpreendentemente aceita ser filmado durante o repouso, numa imponente cabine da classe executiva. Assim, tal como um Big Brother das celebridades presas, sabemos que Eike não jantou durante o trajeto, apenas bebeu dois copos de leite, e mexeu bastante no celular, embora não estivesse com acesso à internet.
Há, portanto, uma atenção exacerbada – e altamente questionável, em relação ao interesse jornalístico – na “vida privada das celebridades” (como vivem? Como elas dormem?), a qual será usada como chave ao final da reportagem, quando nos serão apresentadas as más condições que esperam Eike Batista na prisão: uma cela de 15 metros quadrados, dividida com outros presos, sem banheiro, apenas com um buraco no chão. De alguma forma, a construção entre dois pólos na reportagem (Eike classe executiva / Eike encarcerado) ajuda a concretizar a catarse àqueles que a assistem. Como se a reportagem dissesse: veja como tudo que sobe, por fim, desce! Afinal, a ascensão e queda dos poderosos é uma temática literária de origens melodramáticas, mais antiga do que podemos imaginar.
Mas há, durante toda a cobertura da prisão de Eike, um estranhamento proporcionado pelo discurso confuso, algo esquizofrênico, que mistura a celebridade, a devassa de sua intimidade (com sua autorização, diga-se!), o símbolo empreendedor, e o tom demagógico de vingança dos brasileiros. No fim, não há muita informação jornalística aqui, apenas a busca por ressaltar curiosidade mórbida e suscitar emoções (especialmente as de prazer pelo grand finale na prisão destinada aos que não têm ensino superior) naqueles que veem. Em outras palavras, o velho sensacionalismo, antes de qualquer outra coisa.