Finalmente chegamos ao encerramento de uma das mais interessantes séries da última década. Falo de The Affair, do canal Showtime, que se prolongou por cinco temporadas para investigar uma premissa bastante inovadora em narrativas televisivas: ela fala sobre a perspectiva da memória e pelas formas pelas quais um fato é compreendido de maneira diferente pelas pessoas envolvidas nele. Assim, ao longo de cinco anos, acompanhamos o enrosco entre as vidas de quatro protagonistas: Allison (Ruth Wilson), casada com Cole (Joshua Jackson), que se envolve com Noah (Dominique West), marido de Helen (Maura Tierney). Daí sai o “caso” do título – embora a série vá muito além de uma investigação sobre o adultério.
Acometidos por dramas pessoais (Allison e Cole perderam um filho tragicamente; Noah e Helen têm um casamento de longo prazo, e ele, que começa a série como um escritor frustrado, resolve abandonar sua família e optar pelo caso extraconjugal), eles centralizaram histórias densas durante as temporadas. O grande trunfo de The Affair, de fato, foi a constituição tridimensional de seus personagens: a insatisfação de Noah e a entrega a seus impulsos sexuais em busca de uma validação que não conseguia ter na família da esposa; os problemas de Cole com sua própria família, e a incapacidade de elaborar o luto e acolher a mulher depressiva; a submissão de Helen a Noah, ao se revelar capaz de perdoar qualquer coisa que ele faça. Mas uma coisa é inegável – a melhor personagem de The Affair foi, sem dúvida, a complexa Allison, uma mulher de carga trágica incomparável, que parecia segurar dentro de si todo o sofrimento do mundo.
No entanto, Allison morreu assassinada na quarta temporada, justamente quando parecia estar superando sua depressão, em um plot twist bastante improvável e chocante – e que, hoje sabemos, revelou questões tensas dos bastidores, e que ainda permanecem obscuras, ainda que haja especulações de que a atriz tenha exigido um salário condizente ao do outro protagonista, Dominique West. O fato é que The Affair perdeu sua principal personagem (na sequência, Joshua Jackson, o Cole, também se desligou da produção) e ainda assim o Showtime decidiu filmar mais uma temporada. Havia, portanto, uma expectativa sobre qual seria o direcionamento de The Affair sem a sua personagem mais interessante.
Se há alguns momentos sensíveis nesse reencontro, por outro, há um esforço de dar uma espécie de final feliz para essa trama desgraçada, que investigou justamente o quão baixo conseguimos todos descer em busca de algum sentido para nossas vidas.
O resultado dessa temporada derradeira é bastante irregular. Há soluções forçadas, exageradas e pouco críveis. Para começar, a trama busca dar um desenvolvimento para Joanie, a filha órfã de Allison e Cole (interpretada, na fase adulta, pela competente Anna Paquin). Para tanto, projeta um futuro devastado, aos moldes dos episódios de Black Mirror, pouco verossímil, em que o oxigênio se torna escasso e a natureza está em processo de esgotamento. Joanie cresce e se torna uma “herdeira” da tragédia da mãe que não a criou, uma vez que ela é acometida com os mesmos problemas: é autodestrutiva, tende a ser abusada por outros, é incapaz de se imaginar como merecedora de uma boa vida. É como se ela tivesse recebido como legado genético todo o desastre que acometeu Allison (premissa, inclusive, que perpassa a trama, em uma das ideias mais intrigantes da series finale).
Já no presente, a história centraliza-se, por fim, no drama entre Noah e Helen. Depois de passarem por inúmeras separações, eles se reaproximam em condições de abandono – ela, viúva do parceiro Vic, acometido por um câncer na temporada quatro, confrontando todos os personagens com os dramas da ciência da própria finitude (a temporada se abre justamente pelo seu velório); Noah, em franca decadência profissional e pessoal, passa a se sentir progressivamente atraído pela ex-mulher, a quem sacaneou de todas as formas que foram possíveis (e aí, novamente, aproximamos a mais uma inverossimilhança do roteiro: a tentativa de trazer redenção a esse casal tão desgastado, como uma forma de justificar todas as tragédias que ocorreram com todos os personagens ao longo destes anos).
Se há alguns momentos sensíveis nesse reencontro – o roteiro, em certos momentos, é digno de nota, com diálogos ora fortes, ora enternecedores -, por outro, há um esforço de dar uma espécie de final feliz para essa trama desgraçada, que investigou justamente o quão baixo conseguimos todos descer em busca de algum sentido para nossas vidas. Noah, especialmente, está em busca de alguma redenção após todos os erros cometidos (o abandono da primeira mulher e dos filhos, a luxúria e a vaidade enquanto escritor, a traição da segunda esposa), e parte daí, nesta última temporada, uma interessante análise sobre as possibilidades de alguma salvação para aqueles que causaram forte sofrimento a outrem.
No entanto, o custo disso, segundo algumas críticas, é a consolidação de um discurso que beira a misoginia – como se, no fim das contas, o adultério e as traições de Noah fossem todas culpa da sedutora Allison que, como uma Eva trágica, atraiu um homem para fora de seu casamento. Destaco aqui a abordagem de Henrique Haddefinir, no site Omelete: “a série ensaia um julgamento justo para os crimes misóginos de Noah, mas as mulheres em The Affair são sempre retratadas como neuróticas, destrutivas, oportunistas ou sedutoras”. Ainda que Helen esteja, nesta quinta temporada, o tempo todo sendo confrontada com a sua capacidade de aguentar qualquer coisa, por fim há uma mensagem estrutural de que “todo amor vale a pena”- mesmo que seja necessário, para isso, passar uma borracha em anos de abuso e imaturidade emocional do cônjuge.
Outro problema dessa temporada diz respeito às pontas soltas. The Affair contemplou uma grande quantidade de personagens ao longo dos anos, que foram como largadas pelo meio do caminho. Na quinta temporada, há participações especiais de Jeniffer Jason Leigh, como a mãe de Sierra (Emily Browning, que faz American Gods), a vizinha imatura de Helen e Vic, mas ambas as personagens se encerram abruptamente. O mesmo ocorre com Sasha Mann (Claes Bang), um ator que funciona aqui como ponto de tensão entre Noah e Helen.
Mas há bons destaques também nesta despedida: este foi o ano em que as narrativas dos filhos, sempre negligenciadas, tomou mais força na trama. O melhor episódio em toda a temporada cinco é o que se centraliza em Whitney (Julia Goldani Telles), a filha mais velha de Noah e Helen. Na prestação de contas forçada que ela traz com a mãe e o pai (reivindicando que a mãe a libere de seu modelo masculino para poder cometer suas próprias escolhas), há anos de teorias psicanalíticas traduzidas ao público televisivo de forma muito perspicaz.
Mesmo com a temporada desequilibrada, The Affair se encerra como uma das mais interessantes experiências televisivas da última década. E isso não é pouca coisa.