Longa-metragem da cineasta norte-americana Greta Gerwig, Barbie, estrondoso sucesso mundial de bilheteria, tem sido acusado por muitos de seus detratores de ser misândrico. Ou seja, de difundir ódio contra os homens, ao questionar o patriarcado, sistema sustentado há milênios por pilares culturais, sociais, econômicos e políticos que beneficiam os homens em detrimento das mulheres.
Sim, o filme, cuja narrativa é construída em torno de sua personagem-título, boneca fabricada pela empresa de brinquedos Mattel, Inc. lançada em 9 de março de 1959. tem uma evidente e inegável abordagem feminista.
Quem conhece a filmografia de Gerwig, que inclui títulos como Lady Bird – A Hora de Voar e Adoráveis Mulheres, sabe que a diretora, roteirista e atriz têm focado em narrativas com protagonistas femininas que se digladiam com estruturas familiares, sociais e econômicas limitadoras, quando não opressivas. Portanto, Barbie não é uma novidade na trajetória artística de Gerwig. Pelo contrário: é um passo a mais, orgânico e coerente com sua obra fílmica, que já lhe rendeu três indicações ao Oscar.
No longa, a boneca Barbie, vivida pela atriz australiana Margot Robbie, pertence a um subgrupo da marca – ela é um estereótipo, ou seja, é linda, loira, alta, magra, tem pernas longas, pés delicados, moldados para andar sobre saltos altos. Não tem profissão definida, ou qualquer talento intelectual digno de nota. Sua aparência, portanto, mantém seu status quo na Barbieland, mundo cor de rosa onde há bonecas de outras etnias, escritoras, políticas, médicas, em um calculado projeto politicamente correto de diversidade. Mas a rainha, a razão de ser do lugar todo e da marca, é ela.
Acontece que a protagonista do filme, cuja vida é uma eterna festa, sempre leve e solta, mas não exatamente livre, um belo dia começa a ter estranhos pensamentos sobre a morte e seu corpo perfeito apresenta preocupantes anomalias. Os pés já não parecem mais moldados para sapatos de salto alto e, como uma mulher de carne e osso, ela passa a acumular celulite. Barbie já não é a mesma e, para voltar a ser a sua normalidade, ou seja, a ser “perfeita”, ela precisa empreender uma jornada rumo ao mundo real, onde sua dona pode estar atravessando dias difíceis. Junto a ela, sem ter sido exatamente, convidado, vai Ken (Ryan Gosling).
Costela de Barbie
Na Barbieland, os Kens – há vários deles, de diferentes etnias, mas todos de certa forma pertencentes a um padrão de beleza – são acessórios das Barbies, como se tivessem sido criados a partir de suas costelas, em uma analogia à metáfora patriarcal bíblica. Vivem em função das bonecas. E o Ken estereótipo, loiro, alto, forte, ariano, segue sua Barbie a todos os lugares aonde ela vá, e com ela acaba partindo rumo ao chamado Mundo Real sem saber o que lá vai encontrar.
Na Barbieland, os Kens – há vários deles, de diferentes etnias, mas todos de certa forma padrões de beleza, também – são acessórios das Barbies, como se tivessem sido criados a partir de suas costelas, em uma analogia com a metáfora patriarcal bíblica.
Ao chegar a Los Angeles, sede da Matell, o casal de bonecos descobre muito rapidamente que vivia em um mundo de fantasia, distorcido. Barbie acreditava ser, há décadas, um modelo de comportamento para as mulheres reais, as empoderando e lhes servindo como exemplo a ser seguindo. Não é verdade! Para seu choque, entre as garotas mais jovens, inclusive, ela é desprezada, por encarnar um símbolo de opressão. Basta por seus pés delicados na vida real, que a boneca começa a ser assediada, inclusive sexualmente, e julgada por sua aparência. A experiência de Ken é um tanto diferente.
Se de onde veio, todo o poder se concentrava nas mãos das Barbies, do sexo oposto, no Mundo Real quem manda, inclusive na própria fábrica de brinquedos que produz os bonecos, são homens. Tudo parece existir em função e para eles. É o País das Maravilhas para Ken, que de mero e submisso coadjuvante passa ambicionar o protagonismo.
Mesmo sem ter grande habilidades, ou formação, capazes de lhe garantir um lugar ao sol, ter “nascido” homem (e branco) já lhe garante muitos privilégios. Ele, então, resolve importar para Barbieland o patriarcado, que lá, sem grande demora, começa a se estabelecer como sistema social e político, fazendo com que as Barbies, por meio de coação e um tanto de inércia, acreditem ser melhor assim, o naturalizando como sistema a ser seguido. Qualquer semelhança com a vida aqui fora, assim sendo, não é mera coincidência.
Essa busca quase involuntária de Ken pelo protagonismo, tanto em seu mundo quanto dentro da narrativa do filme, é um dos trunfos de Barbie. Greta Gerwig, ao contrário do que vozes mais conservadoras e reacionárias tentam pregar, não fez um filme anti-homem.
O roteiro, assinado por ela e seu marido, o também diretor Noah Baumbach (de História de um Casamento), coloca em questão o patriarcado como forma inquestionável de existência, e denuncia a masculinidade hegemônica, tóxica e violenta, que nega às mulheres voz, espaço e agenciamento, mas também impede os homens de encarar as suas fragilidades, seus desejos e sentimentos mais profundos. Sim, o patriarcado vitimiza muito homens e meninos!
Ao se despedir do mundo de faz de conta e de Ken, para voltar ao Mundo Real e se tornar uma mulher de fato, e não mais uma boneca, Barbie diz ao pretenso namorado que ele e os outros Kens também precisam se encontrar, sair da forma, para buscar suas verdades, e saber quem de fato são, para além da comodidade das construções sociais e culturais que os encaixotam.
Precisamos, neste momento no qual o filme se torna um fenômeno, falar tanto a respeito de Barbie quanto sobre Ken.
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