Há no cinema do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho um traço notável, presente tanto em seu primeiro longa-metragem, O Som ao Redor (2013), quanto em seu mais recente trabalho, o estupendo Aquarius, que estreou com sucesso de público e crítica semana passada no Brasil.
Ainda que o cineasta lance sobre a sociedade brasileira contemporânea um olhar aquilino, capaz de enxergar, de forma bastante crítica e abrangente, contradições, preconceitos, vícios e pecados, ele não assume, em momento algum, a postura de dono da verdade, com o dedo em riste. Evita, a todo custo, o tom panfletário ou didático que banalizaria as histórias que conta.
Ético, ele deixa claro, em ambas as narrativas, que fala a partir de uma posição bastante sua, a de um representante da classe média, intelectualizada, capaz de voltar-se para si e sua realidade com autocrítica, mas também de forma amorosa, afetiva.
Ao contrário de O Som ao Redor, que não tem apenas um personagem central, toda a narrativa de Aquarius se desenvolve em torno de sua protagonista, a jornalista e crítica musical Clara, esplendidamente interpretada por Sonia Braga, que nela encontra talvez a personagem mais complexa de sua extensa carreira.
Com quase duas horas e meia de duração, Aquarius é, ao mesmo tempo, um fascinante estudo de personagem e uma potente metáfora sobre o Brasil contemporâneo, que tem em Clara uma espécie de heroína ética, imperfeita, porém valente, que entra em confronto com forças que tentam de alguma forma vencê-la, ou esvaziá-la, física, moral e psicologicamente.
Câncer
Na primeira parte do filme, que se passa na virada da década de 1980, Clara é vivida por outra atriz, a mineira Bárbara Colen. Na sequência inicial de Aquarius, a vemos a bordo de um carro nas areias de uma praia do Recife, com sua turma. Ela lhes apresenta, numa fita cassete, a canção “Another One Bites the Dust” (que fala sobre guerra e morte), hit da banda britânica Queen. Parece exultante, mas ainda não sabemos exatamente por quê. Mais tarde, descobriremos que ela celebra a própria vida.
Um pouco depois, Clara chega a um apartamento, no edifício Aquarius, onde acontece uma grande festa de aniversário para sua tia, que completa 70 anos, mas parece um tanto alheia a tudo. Enquanto brindam sua existência, lembrando grandes feitos biográficos, ela relembra o grande amor de sua vida, momentos de intensa paixão, dando ao espectador uma pista de qual é a principal matéria-prima emocional do longa de Mendonça: a memória, mas não aquela de acontecimentos notáveis, mas a afetiva, constituída por pequenos detalhes, representados por uma cômoda, móvel que permeará toda a narrativa de Aquarius.
Na mesma ocasião, celebra-se, também, a vitória de Clara contra um câncer. Já mãe de três filhos pequenos, ela enfrentou a doença, em um tratamento doloroso, e, naquele momento, brinda com amigos e parentes essa superação, ao som de “Toda Menina Baiana”, sucesso de Gilberto Gil – canções importantes para a vida emocional vão costurar toda a saga da personagem, que ressurgirá no mesmo apartamento, ouvindo esse LP, mais de três décadas depois, nos dias atuais.
Clara agora tem 65 anos, é aposentada, embora ainda escreva livros. Seus filhos, adultos, já não moram mais com ela e apenas a visitam. Sua casa tornou-se uma espécie de extensão geográfica, espacial, da vida da protagonista. Centenas, senão milhares de discos de vinil, livros por toda a parte, um pôster imenso de Barry Lyndon, clássico absoluto de Stanley Kubrick, fotos em porta-retratos. O passado de Clara, em um exímio trabalho de direção de arte, se faz presente em todos os cômodos do apartamento, e do filme.
Mas, ironicamente, ela não é uma mulher parada no tempo, pelo contrário. A memória se faz viva em sua vida, porque dela a personagem se alimenta para manter-se viva.
Se em O Som ao Redor, Mendonça falava da figura patriarcal e oligárquica de um antigo senhor de engenho agora vivendo em Recife, essa classe detentora do poder em Aquarius se materializa em duas gerações distintas da Construtora Bonfim, império que se perpetua, apesar de mudanças na embalagem.
Em entrevista a uma jovem repórter do jornal onde um dia trabalhou, Clara diz que não despreza as novas tecnologias, como o mp3, o streaming. Apenas se recusa a esquecer tudo que as antecedeu: o passado, como mensagens lançadas ao mar dentro de garrafas, é essencial para se compreender o presente, e se pensar em possibilidades de futuro. Os discos, os livros, as fotos, a cômoda herdada de sua tia, são partes da pessoa que ela se tornou.
Talvez por isso que, quando uma grande construtora tenta de todas as formas comprar seu apartamento, com a intenção de demolir o edifício para ali construir uma torre modernosa, impessoal, ela se recusa. Sua vida está toda ali! A memória de tudo que viveu. O prédio, situado na Praia de Boa Viagem, endereço nobre da capital pernambucana, é um dos últimos remanescentes de uma época que não existe mais – e, bem ao estilo brasileiro, sem deixar traços, devido a uma predatória especulação imobiliária.
Classe média
É fascinante como Mendonça Filho parece compreender quem é Clara, uma mulher esclarecida, intelectual, que não precisa ficar naquele apartamento – tem outros cinco imóveis na cidade, alugados, pensão do marido, uma aposentadoria –, mas ali decide continuar residindo, vivendo, por uma questão existencial, mas também política. Não deseja que a força implacável do capital passe por cima de sua história, a apagando como se nunca tivesse ocorrido. A fotografia de Pedro Sotero e Fabrício Tadeu e a direção transformam o apartamento e o edifício em um universo, os revelando meticulosamente ao espectador. Tudo pulsa no filme.
A luta de Clara por seus direitos é detalhadamente descrita pelo roteiro de Mendonça Filho, que fala a respeito de seu apego ao passado, à cultura, à História do país, da cidade. Seus desejos – sim, ela é uma mulher madura a quem não é negada uma sexualidade –, pudores (em relação à cicatriz física e emocional deixada pelo câncer), seus anseios. Está tudo ali no corpo e na alma de Clara, e de Sonia, que se entrega ao personagem, com delicadeza e fúria.
Em entrevista a este jornalista e crítico, concedida em 2013 (leia texto aqui), Mendonça, por ocasião do lançamento de O Som ao Redor, disse que não se sentiria à vontade para narrar seu filme a partir da perspectiva de personagens de uma classe social à qual não pertencesse. Em Aquarius, essa postura se reitera.
Embora Clara tenha uma relação íntima e amorosa com Ladjane (Zoraide Coleto), sua empregada há anos, Mendonça nunca a traz para o centro de seu discurso. Sabemos que perdeu um filho atropelado por um bêbado que não o socorreu, que mora em Brasília Teimosa, bairro popular também à beira-mar, e até acompanhamos Clara a sua casa numa festa de aniversário, mas Mendonça Filho nunca esboça a intenção de narrar a história de Ladjane, ou finge conhecer a fundo sua geografia. A vemos sempre através dos olhos de Clara, uma visitante.
E é também por meio de sua subjetividade que enxergamos a ambição e ganância desmedidas da construtora Bonfim, de certa forma personificadas no jovem neto do proprietário da empresa, Diego (Humberto Carrão), recém-chegado do um curso de MBA nos Estados Unidos e disposto a transformar o “novo Aquarius” em seu primeiro empreendimento.
Se em O Som ao Redor, Mendonça falava da figura patriarcal e oligárquica de um antigo senhor de engenho agora vivendo em Recife, essa classe detentora do poder em Aquarius se materializa em duas gerações distintas da Construtora Bonfim, império que se perpetua, apesar de mudanças na embalagem.
Ironicamente, em uma das sequências mais perturbadoras do longa, a empresa instrumentaliza os fiéis de uma igreja evangélica neopentecostal para desestabilizar Clara, que resiste contra o assédio da empreiteira, permanecendo como a última moradora do Aquarius, quando todos os demais já venderam seus apartamentos.
Sem demonizar a classe média, mas também sem se furtar de apontar suas idiossincrasias, Mendonça Filho transforma o edifício Aquarius, e o conflito em torno de sua ocupação, em uma metáfora poderosa e muito atual do Brasil. O edifício é um microcosmos a partir do qual múltiplas leituras podem ser feitas em um filme arrebatador, inesquecível. Assisti-lo com olhos e ouvidos bem atentos é uma grande experiência, quase um dever cívico.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.