Filme que marca a estreia solo na direção de Clarissa Campolina, Canção ao Longe inicia com uma cena marcante: uma menina negra que vê as paredes de sua casa desmoronar, enquanto ela ainda está dentro. Trata-se de um recurso poético potente que vai se conectar com a história sensível – e feminina – contada no longa.
O drama acompanha a vida de Jimena (papel de Mônica Maria), uma jovem mulher negra que se sente perdida em seu lugar no mundo. Ela mora com a mãe e a avó (que são brancas) em Belo Horizonte e desenvolve sua carreira como arquiteta. Mas há uma inquietação dentro de si que é simbolizada pela distância do pai, um peruano que voltou para o país de origem, abandonando a família.
Essa ausência deixa um vazio em Jimena que só cresce com o tempo. Ao querer saber do pai, de quem a mãe e a avó falam pouco, ela intenta descobrir sobre si e sobre seu lugar no mundo. Para isso, começa a trocar cartas com o pai depois de bastante tempo sem contato.
‘Canção ao Longe’: uma história de crescimento
Pode-se talvez encaixar o sensível Canção ao Longe dentro do tradicional gênero coming of age, muito explorado na literatura, no qual se acompanha o amadurecimento de um personagem que rompe a casca da adolescência para enfrentar as dores de se tornar adulto.
Toda esta história é tratada de maneira muito suave neste filme em que o feminino também parece transbordar, sem apelar a clichês.
Contudo, o filme de Clarissa Campolina traz camadas a mais ao abordar a questão da raça. Filha de um casal interracial, Jimena sofre pela falta de referenciais pretos, assim como ela. A única chance que parece ter para achar esse lugar é o pai – o que também coloca uma grande expectativa sobre quais os retornos que terá dele. “Perdi as contas de quantas vezes tive que responder se sou adotada”, escreve ela em carta ao pai.
Toda esta história é tratada de maneira muito suave neste filme em que o feminino também parece transbordar, sem apelar a clichês. Outro trunfo é que Jimena é encarnada lindamente pela atriz e artista visual Mônica Maria, que consegue nos entregar a tristeza pulsante, mas sutil, que vive dentro da arquiteta. Seu olhar vazio ecoa na tela e permanece com o espectador até depois do fim do filme.
Procurar a si mesma e o seu lugar tem a ver, também, com a perspectiva geográfica, espacial. Jimena sente que precisa romper com a casa da mãe e da avó, que representam um modelo de mundo com o qual ela não se identifica. Ao mesmo tempo, ela encontra algumas pistas sobre o passado pelas cartas do pai, mesmo que ele pareça resistente a lhe entregar um pouco mais sobre a própria vida.
O que o roteiro (escrito por Clarissa Campolina, Caetano Gotardo e Sara Pinheiro) vai sutilmente nos revelando é que talvez Jimena só possa eclodir à medida em que adquirir forças para quebrar tudo, metaforicamente falando. Ela precisa “matar” a mãe e o pai para poder ir achando um espaço de existência que faça sentido – o que também pode aparecer na relação que ela vai construindo com um namorado e o filho dele.
Repleto de silêncios e de momentos fortes (um deles é a cena sublime em que a cantora Juliana Perdigão aparece cantando Caetano Veloso em uma janela), Canção ao Longe é um pequeno filme (em duração) que surpreende em sua delicadeza.
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