O longa-metragem Cinema Novo, premiado como melhor documentário no Festival de Cannes deste ano, não é, de maneira alguma, um filme para quem busca saber, por meio de um discurso expositivo, didático-pedagógico, o que foi o movimento cinematográfico que agitou o país nos anos 1960. Seu realizador, Eryk Rocha, filho do principal líder do grupo cinemanovista, Glauber Rocha, optou por uma proposta estética que, talvez, seja o extremo oposto disso. Realizou uma obra poética, que se constrói a partir de uma minuciosa colagem de imagens, entrevistas, fragmentos que dialogam entre si dentro uma lógica que advém de um brilhante trabalho de montagem que não apenas costura todo esse material. Mas, em certa medida, a partir de um olhar que foge do saudosismo, da nostalgia reverente, resgata a urgência e ressignifica o que foi essa onda que se ergueu no mar do audiovisual brasileiro há mais de 50 anos.
Eryk não cede à tentação de fazer uma homenagem, paralisando o cinema novo no passado como um monumento intocável, e de certa forma inerte. Ele o olha do lado de dentro, como cineasta que é e também como descendente da geração que o fez acontecer. Por conta dessa postura, ele se utiliza de todo o material a seu dispor, e realiza um filme extraordinário, que, ao lado de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, representa o que há de melhor na produção nacional deste ano.
O maior mérito de Eryk é, talvez, não olhar para o passado como algo que já foi, mas captar no presente o que ainda há de vivo e pulsante nos filmes e propostas estéticas que a geração de seu pai fez vir ao mundo.
Cinema Novo, que poderia ter resultado mais palatável caso tivesse obedecido uma organização cronológica ou temática, no intuito de informar, subverte essa lógica. Busca a potência das imagens, sua força emocional e ritmo, fazendo com que o documentário se aproxime mais de uma composição musical, embotada de energia, sentimentos, pulsações, que permitem ao espectador elaborar, por meio dos sentidos da visão e da audição, um caminho narrativo. É uma obra aberta, enfim. O espectador mais passivo, aquele que gosta de tudo mais mastigado, vai se frustrar.
O maior mérito de Eryk é não olhar para o passado como algo que já foi, mas captar no presente o que ainda há de vivo e pulsante nos filmes e propostas estéticas que a geração de seu pai fez vir ao mundo.
Abre o filme a sequência final de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber. Em um primeiro momento pode parecer como uma escolha óbvia, quase sentimental. Veem-se os protagonistas Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães) correndo pelo sertão. Não não é essa a intenção de Eryk. Aos poucos, à medida em que o filme se alimenta de cenas de outros longas, como Cinco Vezes Favela, Barravento, A Falecida, A Grande Cidade, Vidas Secas e outros, percebe-se que Eryk vai bem além da mera colagem imagética. Ele usa esses fragmentos a serviço de sua proposta estética, retrabalhando seus sentidos originais, com o intuito de construir o seu discurso, que muitas vezes foge do que cada longa queria, isoladamente, dizer. É um belíssimo esforço de apropriação e ressignificação.
Prova disso é que Cinema Novo, em sua costura interna, também se apropria de sons, trilhas musicais dos filmes, se interconectando de forma propositalmente invasiva: o áudio de um vaza no outro, o tirando de sua rota original, e lhe emprestando outros caminhos possíveis de interpretação. Eryk, assim, de certa maneira dessacraliza as obras, das quais se serve como um artista que escava em busca de outros sentidos, no intuito de revelá-los, de fazê-los emergir, dentro de seu documentário, que surge como algo novo, vital e mais atual do que nunca.
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