O cineasta Pedro Almodóvar está de volta depois de seu mais recente longa-metragem, Mães Paralelas (2021). Retorna às telas com o curta Estranha Forma de Vida, faroeste queer que tem 30 minutos de duração, mas cuja trama que se expande por 25 anos. O ator chileno Pedro Pascal (de The Last of Us), intenso como de costume, desempenha o papel de Silva, sofrido ainda que charmoso caubói mexicano que chega a uma remota cidade do Oeste americano chamada Bitter Creek (Riacho Amargo, em português). Depois de amarrar seu cavalo e acariciá-lo de forma bastante singular, Silva procura o xerife Jake, interpretado por Ethan Hawke (de Antes do Amanhecer), sujeito áspero, de olhar duro. A cena se dá ao som do triste fado que dá nome ao filme, na voz de Caetano Veloso, dublado por um jovem ao violão.
O encontro entre os dois protagonistas marca a primeira vez que os dois homens, amantes na juventude, se veem em 25 anos. Após compartilharem um jantar, no qual Jake abandona sua abstinência de álcool e bebe vinho, os sentimentos entre eles se tornam intensos demais para serem ignorados e eles acabam na cama, sobre a qual há a pintura de uma mulher, uma dama da belle époque. Na manhã seguinte, Silva pede emprestada uma cueca de Jake, e a meticulosa tomada de Almodóvar da imaculada gaveta de roupas íntimas de Jake assume conotações fetichistas, além de revelar muito sobre a sexualidade reprimida do xerife e a respeito da pulsão erótica mais à flor da pele do vaqueiro.
O que se segue a esse breve idílio não é nem um pouco romântico, ainda que carregado de tensão sexual: Jake instantaneamente se arrepende de ceder aos seus desejos, mergulhando em uma banheira como que para se purificar. Além disso, está na trilha do filho de Silva, George Steane, suspeito de assassinato. Jake se mantém firme em sua determinação de levar esse suposto criminoso à Justiça, o que irá resultar em um confronto violento.
‘Estranha Forma de Vida’: deserto
Estranha Forma de Vida é, sim, nostálgico, mas também subversivo, ao reverenciar e brincar com um território mítico, e cinematográfico, tão profundamente masculino com o western.
Aqui vale dizer que Silva e Jake viveram por todo esse tempo geograficamente separados por um deserto, espécie de zona de fronteira entre a natureza, representada pelo mexicano, e a civilização, personificada pelo xerife, à qual ele se sente preso, embora ele seja, teoricamente, quem tem o poder de prender, em nome da lei. Silva atravessa esse território árido para rever a grande paixão de sua vida, e lhe pedir clemência para o filho. O verdadeiro ajuste de contas, o confronto, contudo, vai ocorrer só quando for a vez de Jake cruzar o deserto, desta vez em direção ao mundo natural, menos regrado e mais selvagem, de seu ex-amante. Lá, talvez, esteja o seu destino, seja ele qual for.
A questão do tiroteio é há muito tempo explorada nos westerns por seu significado metafórico, e aqui Almodóvar brinca de maneira lúdica e sutil com as perguntas sobre quem está atirando, quem está sendo alvejado e quais são as complexas relações sexuais (em inglês, o verbo to shoot significa atirar, mas também, figurativamente, ejacular) e de poder implícitas no tratamento de uma ferida de bala, em que são usadas justamente as imaculadas cuecas brancas como bandagens.
É verdade que Estranha Forma de Vida poderia ser mais longo – no cinema, o público suspira, desapontado, quando os créditos finais sobem na tela. Mas, talvez, a opção por uma narrativa mais longa pudesse diluir o impacto das várias cenas tensas e comoventes entre esses dois homens tão diferentes, mas ao mesmo tempo tão marcados pela impossibilidade desse amor, que teve de ser recalcado por Jake.
Estranha Forma de Vida é, sim, nostálgico, mas também subversivo, ao reverenciar e brincar com um território mítico, cinematográfico, tão profundamente masculino, mas também homoerótico, como o western. Não tem a transcendência trágica de O Segredo de Brokeback Mountain, que chegou a ser oferecido (e recusado) por Pedro Almodóvar antes de se tornar um clássico do cinema contemporâneo pelas mãos do cineasta taiuanês Ang Lee. Ainda assim, o curta de Almodóvar é uma obra instigante, provocativa e sexy em suas imperfeições.
O filme está em cartaz nos cinemas e será lançado pela plataforma de streaming MUBI.
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