O título no Brasil pode ser tão literal quanto ruim. Mas o fato é que Garotos de Programa (tradução de My Own Private Idaho, em referência a uma música do B-52s), terceiro longa-metragem de Gus Van Sant, é um pequeno grande clássico do cinema queer. Lançado em 1991 (quatorze anos de O Segredo de Brokeback Mountain, por exemplo), o filme escandalizou, inicialmente, por trazer dois galãs em ascensão em Hollywood nos papéis de dois prostitutos: River Phoenix e Keanu Reeves.
A história de Garotos de Programa é mais voltada à jornada da dupla do que exatamente aos fins a que ela se destina. Os holofotes estão sobretudo em Phoenix, que vive Mike Waters, um garoto essencialmente trágico. Ele vive de traficar drogas e de prestar serviços sexuais a homens em qualquer lugar, enquanto busca o que parece impossível: o abraço de sua mãe, que o abandonou, e a quem ele enxerga em pequenos devaneios que vem à sua mente quando está prestes a apagar.
Mike tem narcolepsia, uma condição neurológica que produz sonolência em excesso. A doença aparece como metáfora criativa para expressar a sua profunda desolação. Desde a primeira cena, o vemos desmaiar em situações que o colocam na mais completa vulnerabilidade, como em uma estrada deserta. Especialista em pertencer a lugar algum, o personagem nos conta, em texto em off, que depois de um tempo, todas as estradas passam a ser reconhecíveis – tal como as pessoas feias.
Um dia, quando serve sexualmente uma mulher rica e mais velha (Grace Zabriski, a mãe de Laura Palmer em Twin Peaks), ele conhece outros prostitutos. Um deles é o despachado Scott Favor (Keanu Reeves), que é o oposto de Mike. Diferente dele, Scott é rico, filho do prefeito da cidade, e se prostitui apenas por despeito ao pai. Mike, por outro lado, não tem a mãe, desconhece o pai e esmola qualquer afeto, não importa de onde ele venha.
Pioneirismo e coragem em ‘Garotos de Programa’
Assisti ao filme no início dos anos 1990, justamente no contexto de conferir a beleza daquelas duas estrelas que causavam frisson entre as adolescentes na época. Mais de trinta anos depois, é interessante notar o quanto o filme de Gus Van Sant ganha outras nuances que talvez não fossem tão facilmente observáveis naquele tempo remoto.
A obra, com roteiro original do diretor, baseia-se livremente na peça Henrique IV, de Shakespeare, cuja trama enfoca uma rebelião política liderada por um nobre que se torna rival do príncipe herdeiro. O príncipe Hal leva uma vida boêmia, fugindo de qualquer responsabilidade, e convive com trapaceiro John Falstaff nas tavernas.
A cena mais clássica do filme, em que os dois dividem uma fogueira enquanto acampam na estrada, é de uma emoção incomparável nos filmes de temática queer.
O Mike de River Phoenix perde praticamente todo o contexto cômico de Falstaff ao se tornar um triste vagabundo, com obsessão pela mãe, que se encanta aos poucos pela leveza do nobre nepobaby que recusa o berço esplêndido. Ao lado de outros prostitutos e golpistas, eles dormem nas ruas de Portland e se deslocam a Idaho e até Roma em busca da mãe que Mike almeja.
Mas, em meio a tudo isso, há uma miríade de personagens marcantes que parecem compor uma espécie de ópera bufa subversiva, trazendo realmente ares de teatro ao filme. De certo modo, tudo gira em torno de um sujeito velho chamado Bob Pigeon (William Richert), uma espécie de traficante, cafetão e pai de todos os michês – e a quem Scott Favor se reporta como alguém que ama mais do que a seu próprio pai.

Com o afastamento temporal de seu lançamento, Garotos de Programa se destaca por diversos fatores. O primeiro deles é a coragem na abordagem trazida do trabalho na prostituição masculina em seus aspectos mais devastadores, servindo como meio de sobrevivência para meninos miseráveis. Scott e Mike são cercados de outras companhias (uma curiosidade: um deles é Flea, baixista do Red Hot Chilli Peppers) que narram para a câmera as suas desventuras ao atenderem homens que não os respeitam minimamente.
Esteticamente provocante, chama a atenção também a forma com que Gus Van Sant filma as cenas de sexo de uma maneira um pouco cômica, o que traz algum estranhamento em uma obra dramática. Os closes ocorrem em frames fotográficos que dão uma sensação que, por mais que Van Sant estivesse desbravando aqui o cinema queer, sua ideia não era excitar, e sim usar o sexo pago para causar impacto.
Por fim, é impossível não falar na maturidade profissional de River Phoenix e Keanu Reeves, ambos na casa dos vinte (Phoenix tinha vinte anos e Reeves, 27). Em cenas que exigem emocionalmente dos dois atores, fica nítido o quanto os dois sempre estiveram à frente de seus colegas galãs com quem dividiam espaço na época – tanto pela escolha de papéis como esses, quanto na capacidade que tinham para encarná-los.
A cena mais clássica do filme, em que os dois dividem uma fogueira enquanto acampam na estrada, é de uma emoção até hoje memorável entre os filmes de temática queer (talvez essa emoção só se repetiria na interação entre Heath Ledger e Jake Gyllenhaal em O Segredo de Brokeback Mountain). Mas salta aos olhos, acima de tudo, a essência vulnerável e potente de River Phoenix, um ator que nos deixou precocemente, em 1993, e que certamente teria nos surpreendido muito mais.
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