Pensem em um filme necessário! Por várias razões, Marte Um, primeiro longa-metragem solo do cineasta mineiro Gabriel Martins (de O Nó do Diabo), que estreia nos cinemas, tem a cara do Brasil em 2022. É urgente, político e poético ao retratar o cotidiano de uma família preta de Contagem, município da região metropolitana de Belo Horizonte, em todo seu colorido e contemporaneidade, revelando suas dores e delícias.
No centro da trama, sem que seja o único protagonista, está o pré-adolescente Deivinho (Cícero Lucas). Seu pai, o porteiro Wellington (Carlos Francisco), sonha que ele se torne jogador do Cruzeiro e garanta à família um futuro melhor, como se esse fosse o único caminho possível rumo ao sucesso e à fortuna para um menino preto brasileiro. Mas não é com esse destino que o garoto sonha.
Ele aspira se tornar astrofísico e participar da primeira missão colonizadora de Marte, prevista para 2030. Ou seja, não se conforma com o projeto de vida planejado pelo pai. Quer mais – e, literalmente, ir mais longe, bem adiante de sua realidade periférica, embora tenha consciência de que, para muitos, sua ambição possa soar como um delírio.
‘Marte Um’: lugar de fala
Realizado pela produtora mineira Filmes de Plástico, hoje uma das mais profícuas no Brasil, Marte Um se propõe a dar protagonismo a uma família de brasileiros pretos como outras tantas, milhões até, no país, mas não quer fazê-lo de um ponto de vista exótico e paternalista. Martins, afinal, é afro-brasileiro e conhece essa realidade do lado de dentro. Tem, portanto, lugar de fala.
Essa família é formada por Tércia (Rejane Faria), a mãe, diarista que também se dedica a afazeres domésticos. Wellington, o pai assalariado, frequenta os Alcoólicos Anônimos (AA), e Eunice (Camilla Damião), a irmã de Deivinho, é estudante de Direito e está apaixonada por uma colega de turma, Joana (Ana Hilário), também negra, com quem ela deseja mudar para um apartamento em breve. Ela teme, contudo, a reação dos pais com a revelação de sua homossexualidade.
Marte Um se propõe a dar protagonismo a uma família de brasileiros pretos como outras tantas no pais, mas não quer fazê-lo de um ponto de vista exótico, condescendente e paternalista.
Estamos diante de uma configuração familiar e social em profunda mutação, na qual valores conservadores, tradicionais, se confrontam com outra realidade, de avanço.
De um lado, vemos o ultraconservador governo Bolsonaro, que no longa acaba de chegar ao poder (imagens da posse, em 2019, aparecem no filme) e, do outro, há todo o legado deixado pelas gestões progressistas do PT – Eunice é empoderada e tem orgulho de seu cabelo afro, está às vésperas de sua formatura e é, possivelmente, a primeira integrante da família a concluir um curso superior.
No ótimo roteiro de Martins, premiado com o Kikito no recém-encerrado Festival de Gramado, do qual também também saiu com os troféus de Melhor Filme pelo Júri Popular, Grande Prêmio do Júri e Melhor Trilha Sonora, há lugar para o pânico, encarnado por Tércia, que, literalmente, o enfrenta em crises sucessivas – sente que algo ruim está para acontecer. Mas, também, para o afeto, a esperança e o sonho, representados por Eunice e Deivinho, que se recusam a aceitar o que sua condição social, e racial, lhes impõe. Querem bem mais, embora a realidade pareça negar a eles esse direito.
Como Martins também responde pela montagem do seu filme, há, talvez (e, aqui, repito, talvez) cenas que poderiam ter ficado de fora da edição final – Marte Um possui duas horas de duração, poderia ter ganho em agilidade narrativa se fosse um pouco mais enxuto.
Gosto muito da proximidade com que a câmera de Martins acompanha os movimentos dos personagens centrais, da família, em todos os seus conflitos e dilemas, muitos deles bastante peculiares a questões raciais e de classe social, e outros nem tanto – é impossível não se identificar com muitas das situações presentes na trama. Os close-ups, como os de Tércia em suas crises de pânicos, ou de Deivinho, quando demonstra angústia diante das expectativas do pai, são reveladores e nunca gratuitos.
Martins demonstra uma sensibilidade cinematográfica aguda, singular, em processo de maturação. Marte Um anuncia sua voz criativa, que desejamos ouvir em toda a sua potência e humanidade.
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