Ao longo de quase trinta anos, Missão: Impossível construiu um lugar único no universo das franquias de ação contemporâneas. Diferente de seus pares — da sobriedade clássica de 007 ao exagero assumido de Velozes e Furiosos —, sempre navegou com precisão na fronteira entre o rigor técnico, o absurdo narrativo e o prazer evidente do artifício. Era um cinema do truque, da suspensão da descrença, onde o impossível jamais precisava ser explicado, apenas executado com estilo. Uma fórmula que parecia infinita e que resistiu às transformações do blockbuster moderno, atravessando modismos e avanços tecnológicos.
Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1 (2023) representou uma mudança clara nessa dinâmica. A leveza e o humor, marcas registradas desde 1996, deram lugar a uma ameaça impessoal — a inteligência artificial “A Entidade” — e a uma gravidade típica dos thrillers tecnofóbicos atuais. Ainda assim, o filme mantém a energia de Tom Cruise, hoje aos 62 anos, impressionando com sequências de ação de alta tensão e uma montagem que mantém o espectador atento do começo ao fim.
A trama acompanha uma corrida global para impedir que uma arma nuclear caia em mãos erradas, dialogando com tensões geopolíticas contemporâneas, enquanto Hayley Atwell, como Grace, oferece uma presença feminina relevante na narrativa. Menos preocupado com intrincados jogos de trama, o filme privilegia o peso emocional do protagonista Ethan Hunt e suas perdas trágicas, deixando a história aberta para a continuação.
Mas Missão: Impossível – O Acerto Final, que chega agora aos cinemas, não apenas não soluciona os problemas do primeiro filme, como os amplia de forma quase desconfortável. O longa abandona a leveza que sempre caracterizou a franquia para mergulhar num delírio messiânico, transformando Ethan Hunt — e, por extensão, Tom Cruise — numa figura de sacrifício absoluto. A iconografia é explícita: braços abertos, corpo marcado, silhueta recortada contra cenários apocalípticos, numa imagem que remete mais à crucificação do que ao cinema de espionagem.
Se isso soa grandioso demais, é porque o filme quer mesmo ser lido assim. E é fácil entender a origem dessa ambição. Desde que Steven Spielberg declarou que Cruise “salvou o cinema” na pandemia com Top Gun: Maverick, o ator parece ter assumido essa missão como uma cruzada pessoal — uma narrativa épica e uma autoimagem mitificada.
O roteiro, de Christopher McQuarrie — parceiro de Cruise desde Nação Secreta (2015) — tenta justificar essa virada épica resgatando elementos da própria história da franquia. O que chega a ser constrangedor: objetos como a faca que escorregou das mãos de Jean Reno no primeiro filme, de Brian De Palma, são elevados a status de relíquias míticas, carregadas de um significado cósmico dentro da trama. Uma tentativa de dar densidade emocional a um universo que sempre foi mais leve e fluido.
O resultado é um filme pesado, arrastado, em que as cenas de ação — antes o motor da série — parecem sufocadas por diálogos expositivos, flashbacks redundantes e uma solenidade que beira a caricatura, sem jamais se entregar a ela.
O resultado é um filme pesado, arrastado, em que as cenas de ação — antes o motor da série — parecem sufocadas por diálogos expositivos, flashbacks redundantes e uma solenidade que beira a caricatura, sem jamais se entregar a ela.
Ainda assim, há momentos que remetem ao cinema original da franquia. A sequência subaquática, em que Ethan Hunt busca um submarino desaparecido, é tensa, bem coreografada, sustentada por um suspense físico que lembra o rigor do primeiro filme. A perseguição aérea na África do Sul também resgata aquele prazer sensorial do cinema como experiência física, onde som, imagem e corpo se encontram para gerar tensão. Mas são exceções. O que domina é uma estranha falta de energia, como se o filme fosse uma obrigação — ou pior, um epitáfio antecipado da franquia.
No final das contas, a impressão que fica é que Missão: Impossível esqueceu de ser truque. E sem o truque, sem a ilusão alegre e autoconsciente que sempre definiu sua proposta, sobra apenas o peso de uma missão que, ao deixar de ser impossível, tornou-se simplesmente insuportável.
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