“A história da classe média é uma história sem fatos. Seus interesses comuns nunca levam á unidade. Seu futuro, nunca é escolhido por ela”. O excerto, que faz parte da obra White Collar – The American Middle Classes, de 1951, do teórico Wright Mills, é apresentado no final do documentário A opinião pública, de Arnaldo Jabor, seu primeiro longa-metragem de 1967. O filme traz uma inovação: o som direto que, à época, era novidade. Além disso, é filmado todo no mais completo recurso de cinema verdade – os depoimentos são espontâneos e os takes são quase que totalmente crus.
Mais do que necessariamente uma obra sociológica ou histórica sobre a classe média urbana carioca, A opinião pública é um filme de puro teor antropológico, como afirma o próprio diretor em entrevista ao livro Arnaldo Jabor: 40 anos de opinião pública, publicado em 2007. Nos extras do próprio DVD do filme, o cineasta afirma que “gostaria de abordar a vida do homem comum, me interessava o óbvio”. Neste sentido, gravar depoimentos de pessoas de diversos setores da classe média urbana (sejam jovens, mulheres, empresários ou senhores de idade) foi a maneira utilizada para coletar uma boa dose de ironia em cima da opinião pública da classe média do final dos anos 60.
É importante notar que, naquele momento em específico, passados três anos após o golpe militar de 1964, a maior preocupação daquela fatia da sociedade era com a economia. Cada vez mais o Brasil entrava dentro de um novo patamar em níveis de consumo e quem mais era afetado por isso eram os jovens das grandes cidades. Sendo assim, o papel da juventude naquele período é crucial para o plano desenvolvimentista do país – fossem eles necessariamente politizados ou não.
Arnaldo Jabor pinta o retrato de uma classe média que não tinha domínio sobre si própria.
Por outro lado, o cinema cumpria um novo papel: o de determinar uma crítica engajada sobre os dilemas de debates intelectuais, como as dicotomias entre o rural e o urbano e a noção da questão nacional-popular. Por esse viés, o filme de Jabor passa a ser uma crítica bem construída de uma parcela da população que estava muito aquém deste debate e mais interessada no seu próprio umbigo. Prova disso é a fala dos jovens quando são questionados quanto ao seu próprio futuro, ou das adolescente na prosa sobre romances colegiais.
Portanto, é neste contexto de matizes bastante definidas no país que Arnaldo Jabor decide fazer um filme contra a classe média. Dentro da vertente marxista que bebiam os cineastas da época, falar sobre a classe que estava no meio – nem do lado do progresso (o proletariado), nem do lado reacionário (das classes dominantes) – foi algo novo no cinema brasileiro. A própria narração do documentário a define: “[a classe média] vive correndo. Por não saber o que tema, está paralisada no medo. A classe média é uma classe perplexa. O homem da classe média é sempre de alguém. Hoje, se alista no Exército. Amanhã, será do chefe, do escritório, do arquivo. Nos jornais, será chamada de a ‘opinião pública'”.
Assim, a enquete carioca proposta por Arnaldo Jabor exatos 50 anos atrás deixa de ser meramente um questionário e desenvolve um tom mais acusatório em relação à própria classe média que a assiste. O próprio espelho, como propõe Jean-Claude Bernardet, se torna o método utilizado pelo cineasta para formar uma crítica.
A visão que é passada da classe média é totalmente pejorativa: uma juventude inerte, um grupo de senhores que só pensam em “tomar a Amazônia para o Brasil”, uma senhora que dá conselhos amorosos a jovens sobre como se comportar para ter um bom marido, até mesmo uma mulher que, quando é questionada sobre o que acha do que é o papel na sociedade, responde num tom quase que sepulcral: “Não sei”.
Em determinado momento do longa, são mostradas imagens de pessoas em uma espécie de culto aberto esperando por um milagre, o que condizia com a própria situação da sociedade naquela época. A partir daí, é papel do espectador julgar se, mesmo que as imagens possam ter um quê de kitsch ou que tenham sofrido pela imparcialidade da edição, A opinião pública apenas prova que a classe média brasileira já teve um pé no conservadorismo e na incapacidade de formular opiniões plausíveis ou se isso continua sendo uma constante no Brasil atual.
Longe do imperativo que permeia a obra, principalmente por ter uma característica quase que panfletária em relação à classe média brasileira, o cinema de Arnaldo Jabor se destaca porque é realizado no suor, no verdadeiro esquema de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. O cineasta, em uma das suas mais renomadas obras, pinta o retrato de uma classe que não tem domínio sobre si própria: tanto nas opiniões que produz quanto pelo fato de ser eternamente sustentada por uma classe superior.
Jabor deixa o legado eterno de sempre pensar nessa camada que é ao mesmo tempo tão heterogênea e essencial na sociedade – principalmente agora que, passados 50 anos desde a estreia, talvez o menino que fazia caretas e brincava na frente da câmera enquanto um senhor falava sobre austeridade seja a nova opinião pública.
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