O nacional Pacarrete, um dos longas-metragens brasileiros mais premiados e originais de 2020, grande vencedor do Festival de Cinema de Gramado neste ano, apresenta a arte como peça de resistência à barbárie, ao embrutecimento. O filme, em cartaz em poucas salas no Brasil, entre elas o Cine Passeio, em Curitiba, não poderia ser mais atual e pertinente.
Pacarrete (a estupenda Marcélia Cartaxo, de A Hora da Estrela) nasceu e agora, na velhice, vive na pequena cidade de Russas, no interior do Ceará. Estudou em colégio interno, onde aprendeu um tanto de francês e teve suas primeiras lições de balê. Adulta, morou na capital, Fortaleza, onde foi professora e aperfeiçoou-se na dança, que nunca abandonou totalmente seus sonhos ou seu corpo.
A doença da irmã Chiquinha (Zezita Matos), presa a uma cadeira de rodas, traz Pacarrete de volta a Russas, onde não encontra mais o seu lugar. Enquanto cuida da irmã, com quem divide a casa, tenta não esquecer quem um dia foi: exercita seus passos de balé diante da televisão, assistindo a uma velha fita VHS que guarda como um tesoura, e dá seus passos vida à fora. Seus conterrâneos, contudo, a enxergam como uma excêntrica, por conta do jeito anacrônico de se vestir, linguajar rebuscado e certa arrogância no trato com quem não aprecia seus gostos e manias.
Inspirada em uma personagem real, Maria Araújo, vizinha do cineasta Allan Deberton na cidade de Russas, o filme é, ao mesmo tempo, um mergulho do diretor nas memórias afetivas de sua terra natal e um potente estudo de personagem.
Na cidade, apenas Miguel (João Miguel, de Estômago), dono de um bar, trata Pacarrete com consideração. Percebe sua fragilidade e aprecia sua história, seus talentos e gostos. Ele a encanta com galanteios quase inocentes e ela o escolhe como uma espécie de cavaleiro andante salvador, capaz de protegê-la de alguma forma de um mundo que não a aprecia.
Apesar de cuidar da irmã, Pacarrete, que visivelmente um dia pertenceu à elite local, não desce de seu pedestal. Na sua casa, é a empregada Maria (Soia Lira) a responsável pelos afazeres domésticos, pelo serviço pesado e, muitas vezes, também alvo da arrogância e altivez da protagonista.
Quando Russas está prestes a celebrar seu 200º aniversário, Pacarrete se empolga: os festejos serão a grande oportunidade para ela mostrar sua arte no palco das comemorações, mas a ex-bailarina não é levada a sério e recusa-se a aceitar a rejeição.
Inspirado em uma personagem real, Maria Araújo, vizinha do cineasta Allan Deberton na cidade de Russas, o filme é, ao mesmo tempo, um mergulho do diretor nas memórias afetivas de sua terra natal e um potente estudo de personagem. Pacarrete é tão bem construída pelo roteiro e pela impressionante atuação de Marcélia Cartaxo que, sem exagero, está fadada a entrar para a galeria de grandes protagonistas femininas do cinema brasileiro.
Apesar de tomar a vida real como base, Deberton, em sua busca pela subjetividade de Pacarrete, uma mulher que caiu de seu tempo e vive no fio da navalha da sanidade, a recria como uma figura quixotesca, que se embate contra um mundo que perdeu a delicadeza e a capacidade de compreender sua ânsia e sua dor. Fez um filme emocionante.
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