Primeiro longa-metragem das cineastas cearenses Amanda Fontes e Michelline Helena, Quando Eu Me Encontrar tem uma protagonista que jamais aparece na tela. No filme, que participa da Competição Brasileira do festival Olhar de Cinema, Dayane abandona a família e o noivo, deixando apenas um bilhete, no qual, sem grandes detalhes, escreve que vai embora para descobrir quem é e encontrar seu lugar no mundo. A trama se desenvolve em torno do vazio de sua ausência.
De Dayane, ouvimos apenas sua voz na sequência inicial do longa, quando canta, em companhia de amigas, o samba “Preciso Me Encontrar”, composição de Candeia imortalizada na voz de Cartola. A canção não é a única a pontuar a narrativa. Em outros momentos, músicas como “Trocando em Miúdos”, de Chico Buarque e Francis Hime, e a também buarqueana “Canção Desnaturada”, da trilha de Ópera do Malandro, perpassam a trama com ela dialogando intensamente.
O desaparecimento de Dayane e a lacuna que deixa para trás colocam em movimento Quando Eu Me Encontrar, um entre vários longas-metragens nacionais dirigidos por mulheres em competição no festival curitibano. A mãe Marluce (vivida pela excelente atriz baiana Luciana Souza, de Ó Pai Ó) e sua irmã Mariana (Pipa) têm de reinventar o cotidiano da casa, e repensar os afetos que nela residem, para continuar vivendo juntas. Mas é o noivo, Antônio (David Santos), quem mais sofre, por não compreender o fim do relacionamento, que para ele se revela uma falsa certeza.
As diretoras, também roteiristas, tecem na tela, para o espectador, uma delicada teia de relações em cujo centro está presença ausente de Dayane e sua coragem de romper com o conformismo.
As diretoras, também roteiristas, tecem na tela, para o espectador, uma delicada teia de relações em cujo centro está a presença ausente de Dayane e sua coragem de romper com o conformismo, com a ordem.
Marluce, que de dia trabalha em uma lanchonete e à noite vende seus quitutes na rua para completar o orçamento, se percebe ainda mais só como mulher, mãe e filha – há muito ela não tem contato com a própria mãe, que, em sua percepção, também a abandonou com a avó quando ela era pequena.
Mariana, irmã adolescente de Dayane, enfrenta, na escola de classe média alta onde estuda como bolsista, preconceito de classe, racismo e misoginia. É um ambiente de latente violência onde, a despeito de ser uma ótima estudante, ela é excluída sistematicamente e tenta se impor, por vezes de forma traumática.
Antonio, por sua vez, trabalha como vendedor em uma loja de calçados popular e encarava o casamento próximo como uma espécie de compensação emocional para a dureza do dia a dia. No cubículo onde mora guarda o enxoval que com dificuldade vem comprando peça a peça. A partida de Dayane faz tudo ruir, ou se tornar evidente, dependendo do ponto de vista.
Apostando no naturalismo das interpretações, em diálogos deliciosamente orgânicos, muito convincentes, e personagens bem delineados, complexos, Quando Eu Me Encontrar faz lembrar o mineiro Marte Um, de Gabriel Martins, em seu exercício de observação ao mesmo tempo afiado e afetivo do cotidiano, e retratar gente comum de forma muito autêntica. É um belo filme, com um encerramento tão inesperado quando inspirado, que não encerra nada, apenas anuncia uma possibilidade de caminho.
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