Você já se deparou com um filme, uma peça de teatro ou outra obra de arte diante da qual você, como consumidor da mensagem, acaba se perguntando se aquilo não seria mais um exercício de automassagem do ego do próprio artista do que algo preocupado com grandes reflexões e questionamentos sociais, por exemplo? A arte nasce, circula e pode “justificar-se” pelo exercício da sensibilidade e não do racional. Dessa forma, em essência, a arte não precisa ter uma explicação e um sentido; basta emocionar. Mas não é incomum o público questionar a importância de determinadas manifestações artísticas, taxando-as de “sem noção”, “sem propósito”, “exageradas”, “desnecessárias”.
Pode-se dizer que é a partir dessa situação que o diretor e roteirista Ruben Östlund constrói The Square: A Arte da Discórdia (2018), um filme que adota uma postura ácida, debochada e até niilista diante da arte contemporânea e do universo dos museus. A trama mostra Christian (Claes Bang), curador do Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Estocolmo, trabalhando na divulgação de uma polêmica exposição. Nesse processo, imprevistos surgem e tumultuam tanto a vida pessoal quanto profissional do protagonista.
A exposição, no caso, é a tal The Square do título, um projeto artístico que busca despertar reflexões sobre a ausência (ou não) de confiança entre as pessoas, a existência de solidariedade ou desprezo, empatia ou egoísmo. “The Square é um santuário de confiança e cuidado. Dentro dos limites, dividimos direitos e obrigações”, explica a artista argentina que criou a obra. Indicado ao Oscar 2018 de Melhor Filme Estrangeiro, The Square: A Arte da Discórdia é uma produção pontilhada de aparições de mendigos: aqui e ali eles têm destaque na tela implorando por um pouco de dinheiro. Além do contraste entre gente rica que praticamente só pensa em arte e excluídos que se humilham por migalhas, o roteiro inclui uma acusação coletiva e genérica de furto que flerta com o preconceito de classe social.
Nas discussões sobre arte, este filme de Ruben Östlund lembra muito Cópia Fiel, do diretor iraniano Abbas Kiarostami, que mostra as reflexões filosóficas entre o inglês James Miller (William Shimell) e a francesa Elle (Juliette Binoche) sobre a importância que as pessoas dão às coisas dependendo do contexto. Enquanto trafegam por belas paisagens na região da Toscana, na Itália, James e Elle falam que o trivial, no cotidiano, é ignorado. Mas se essa mesma trivialidade é inserida em um museu, por exemplo, ganha status de arte, de algo especial. O ambiente do museu, “templo da estética”, faz com que as pessoas mudem a percepção sobre o que veem nele exposto. Em determinado momento, The Square: A Arte da Discórdia faz exatamente essa mesma reflexão.
The Square: A Arte da Discórdia cria permanentemente uma atmosfera de dúvida no espectador se determinada cena é algo que está realmente acontecendo no universo dos personagens ou se aquilo seria uma performance.
Contando com Elisabeth Moss no elenco, da série estupenda O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), The Square: A Arte da Discórdia cria permanentemente uma atmosfera de dúvida no espectador se determinada cena é algo que está realmente acontecendo no universo dos personagens ou se aquilo seria uma performance. São vários os exemplos: a remoção de um monumento com operários ao redor da ação filmando com seus celulares. Uma mulher desesperada em meio à multidão gritando “ele vai me matar!”. Um celular que toca inoportunamente no momento do discurso de abertura de uma exposição. O grito revoltado de um chef de cozinha pedindo para os convidados que deixem o ambiente sem pressa.
Essa atmosfera de dúvida (está acontecendo ou é performance?) pode ser encarada como provocação à arte sem profundidade enquanto o projeto The Square, que tem preocupação social, é mal visto. Isso tudo também abre espaço para que seja criticado o fato de a opinião pública, quando mergulha no politicamente correto, “dar uma piscadela” para a censura. “Nós, como um museu, não podemos ter medo de expandir os limites para transcender todos os tipos de tabus. Nada deveria estar no caminho da liberdade de expressão”, defende Christian em certo momento.
Ruben Östlund já mostrou seu talento para roteiro e direção com o impactante Força Maior (2014). Nesse filme, uma avalanche que assusta turistas é metáfora de um relacionamento que desaba. Literal e metafórica, a massa gélida em direção às pessoas que estão em um restaurante desencadeia não apenas uma crise entre o casal de protagonistas e seus filhos. Ela abre margem para visualizar uma “avalanche” sobre a figura do homem enquanto pai, protetor, patriarca, base sobre a qual a família se sustentaria. Com The Square: A Arte da Discórdia, o diretor sueco volta a multiplicar reflexões. Ele comprova seu talento para isso, ao mesmo tempo em que não mostra preocupação em entregar um filme que agrade multidões.
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