“Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”.
Apesar da colocação de Theodor Adorno em Crítica cultural e sociedade (1949), Carlos Drummond de Andrade produziu poesia durante e após Auschwitz, dedicando parte considerável da sua obra a refletir sobre os horrores da guerra.
Por outro lado, a curitibana Castaña não vivenciou o período, mas assim como Drummond, seu primeiro EP, Tiro de Paz, também debate a incivilidade no tempo em que vive.
Talvez essa seja a única maneira de enxergar luz em períodos sombrios: por meio da arte.
Além de adotar essa mesma posição, a semelhança entre os artistas se dá também por meio dos títulos. Isso porque, tal qual A Rosa do Povo (1945) e Claro Enigma (1951), duas das principais obras do escritor, o EP Tiro de Paz reúne elementos dissonantes em sua nomenclatura.
No caso do poeta Itabirano, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Luiz Roncari explica na edição 69 do Jornal Cândido que enquanto a rosa remete à poesia e tem um tom elevado, o povo apresenta um caráter rasteiro. Já Claro Enigma traz a oposição entre o enigmático e o inequívoco.
Da mesma forma, Tiro de Paz causa certo estranhamento, uma vez que, ao se querer a paz, parece óbvio que ela não será conquistada com tiros. Ao ouvir o disco, no entanto, a disparidade se desfaz ao percebermos que, na verdade, as músicas apresentam mensagens de conciliação disparadas com o impacto de uma bala.
A explicação para a denominação vem na própria faixa que dá origem a ela: “Não é tiro pra matar / É pra acordar a consciência / Pra entender de uma vez que a paz não vem da violência”.
‘Ver que todo ser humano ama e se deixa amar / Ver a fome de comida virar fome de aprender / e a criança que usa droga ter direito à comer / Viver em um mundo unido, livre de preconceito / O meu sonho é grande, mas quem sabe existe um jeito’ – Castaña – Parece um Sonho
Essa harmonia pela qual Castaña clama está presente principalmente em sua musicalidade, uma vez que a produção de Bface e a sua forma de cantar trazem um tom suave, fazendo com que, por si só, a audição do EP traga a sensação de paz.
Essa faceta se torna possível também pelo fato de as músicas serem curtas, concisas, objetivas e, acima da tudo, simples.
A simplicidade, aliás, é também uma das principais marcas de Drummond, característica que fez com que se tornasse um dos maiores poetas brasileiros, especialmente por conseguir usá-la para expor os mais profundos sentimentos.
É o caso de “Sentimento do Mundo”, poema em que o eu lírico assume já nos primeiros versos a sua impotência diante de uma imensidão de emoções: “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo”.
Assim, as mãos, membros habitualmente associados à ideia de colocar planos em prática (“mãos à obra”), se mostram insuficientes diante de tão grande sentimento.
Da mesma forma, a imobilidade do eu diante do mundo está também presente em “Parece um Sonho”, música em que são colocados desejos e questionamentos do eu lírico para si e para a coletividade: “Mas não é fácil refletir sobre a vida como um todo / Quem sou eu? Pra onde vou? Ou se tudo isso é um jogo / Se um dia eu vou ver a educação melhor / Se será valorizado o trabalho e o suor / de quem não tem mais alegria de viver e trabalhar / Se um dia o mundo todo vai realmente acordar / parar de explodir os outros só para a explosão filmar / Parar com a devastação e na casa da árvore morar / Ver corrupto extinto e espécies em extinção voltar / Ver que todo ser humano ama e se deixa amar / Ver a fome de comida virar fome de aprender / e a criança que usa droga ter direito à comer / Viver em um mundo unido, livre de preconceito / O meu sonho é grande, mas quem sabe existe um jeito”.
Essa possibilidade de realizar os anseios presente em Castaña, no entanto, não estão em Drummond: “Quando me levantar, o céu / estará morto e saqueado, / eu mesmo estarei morto, / morto meu desejo, morto / o pântano sem acordes”.
A morte, como se apresenta no poema, faz com que seja impossível mudar algo, principalmente devido ao contexto bélico. Já na música “Blunted Freeverse”, mesmo que em vida, o impedimento também existe, mas é possível um vislumbre: “Se eu pudesse todo dia matar a fome da população / Se eu pudesse ajudaria os animais em extinção / Transformaria a vida louca em pura união / paz de espírito, excelência, na ideia, na canção / Se eu pudesse eu abriria os olhos dessa gente / primeiro passo, ter noção. Eu abrirei a sua mente, então”.

Como se vê, o sujeito na canção de Castaña apresenta preocupação não só consigo, mas também com o ambiente que o cerca e, mesmo que não consiga promover as mudanças que deseja, tenta fazê-las por meio de palavras. No entanto, ainda que haja cuidado com o próximo, por vezes se vê a imagem de um ser deslocado, como em “Voando com o Azar”: “Eu só me fuck nessa shit / presente nunca estive / sou daquelas que marca rolê, mas no fim sempre desiste / Tô sempre com preguiça, tô sempre indisposta / Cheguei aos 22 com uma tremenda dor nas costas / Sou muito emotiva, sou muito rancorosa / Cheguei à juventude com a responsa de uma idosa. / Posso ser egoísta, posso ser talentosa / Cheguei até aqui desabafando em verso e prosa / Me sinto meio autista, me sinto perigosa / Cheguei no sapatinho, ainda procuro uma resposta / Não quero ser exemplo, nem quero ser referência / Não quero seu consolo, muito menos sua influência. / Conhece a carência? Ela é minha melhor amiga / Prima da insanidade que vive arrumando briga / Tô sempre acompanhada desse pensamento louco/ Viver só pela imagem, pra mim, é muito pouco”.
Mas ainda que na canção se tenha optado pela solidão, no caso da composição poética o afastamento se dá por alguém alheio, perdido, que não sabe ao certo o que o circunda. É alguém imerso à guerra que não teve opção de escolha, mas que sente os seus efeitos: “Os camaradas não disseram / que havia uma guerra / e era necessário trazer fogo e alimento. / Sinto-me disperso, / anterior a fronteiras, / humildemente vos peço / que me perdoeis”.
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Esse isolamento se torna ainda maior nas duas últimas estrofes, em que o texto se encerra e o ambiente se torna ainda mais pesado com a chegada do dia, que poderia ser sinônimo do nascimento de uma nova esperança, mas marca uma obscuridade ainda maior: “Quando os corpos passarem, / eu ficarei sozinho / desfiando a recordação / do sineiro, da viúva e do microscopista / que habitavam a barraca / e não foram encontrados / ao amanhecer. // Esse amanhecer / mais noite que a noite”.
Esse afastamento, tanto em Castaña quanto em Drummond, pode ser visto como uma tentativa de se autodefinir. Uma definição que se faz pela negação do ambiente negativo onde se vive.
Dessa forma, em ambas as obras o desloucado aparece justamente como quem melhor enxerga, possibilitando a reflexão sobre as barbáries e a tradução do sentimento do mundo.