Uma pessoa exemplar, tida como alguém de boa índole e que tem a envergadura moral necessária para aplicar as normas. Na cidade onde ele opera, a lei impera. Mas, com o passar do tempo, o magistrado se revela e usa seu poder para tomar atitudes condenáveis.
O personagem em questão é Ângelo, da peça Medida por Medida, de William Shakespeare, escrita por volta de 1604, mas extremamente atual, especialmente no cenário de hoje, em que muito se discute sobre a medida das corrupções políticas e cotidianas.
Se por um lado, condenamos os políticos, mesmo os que ainda não foram julgados formalmente, apontando o dedo e dizendo que são todos corruptos, por outro, cometemos os mesmos erros que censuramos.
Sonegação de imposto, aquela coladinha na prova, o cafezinho dos policiais, a compra de produtos falsificados e muitas outras ações são realizadas diariamente, mas vistas como “menores” e que “não fazem mal a ninguém”.
Fazemos aquilo que está ao nosso alcance, os políticos também. Eles, literalmente, nos representam.
O personagem de Shakespeare usa seu cargo para exercitar sua incoerência. Nós, o Facebook. Os MCs, o microfone.
É o caso do rapper Projota, que versa sobre as circunstâncias atuais por meio de “Portão do Céu”, música recém lançada com direito a clipe, que usa a factualidade a seu favor.
A música poderia se tornar um hino para os muitos descontentes, não fosse pela sua abordagem contraditória, que tenta desqualificar a classe política, mas acaba demonstrando as próprias falhas.
‘Não precisei ler Confúcio amigo / Pra saber que não pode ter distância entre o que eu / Faço e o que eu digo’ – Emicida – Rotina.
Esse erro pode ser visto na seguinte frase: “Os muleque é liso, sim, mas o governo é muito mais”. Além disso, já no começo da música, no quarto verso, diz: “Dos ‘Sete Pecados Capitais’, já pratiquei claramente esses 7 desde os 17 e outros 50 mais”.
Ou seja, mesmo adotando uma postura crítica com relação aos políticos, o rapper assume ter praticado a soberba, a luxúria, a inveja, a gula, a ira, a preguiça e a avareza, algo preocupante para alguém que quer se colocar contra a corrupção, afinal, qual é a autonomia de um assumido avaro para isso?
Mas a superficialidade do discurso se torna maior no refrão: “Quem tá puto aí? Levanta a mão! / Tá na hora de revolução”. Ora, instigar uma revolução pedindo para que a plateia levante a mão no show não traz mudança alguma. Se a ideia é demonstrar indignação, talvez essa não seja a melhor forma de fazer isso.
Entretanto, se o cantor da Universal Music peca, outro rapper soube se posicionar muito bem em outra ocasião.
Também feita em cima de fatos pontuais, a música “Dedo na Ferida”, de Emicida, tomava partido da comunidade do Pinheirinho ante às desapropriações violentas ocorridas em 2012. Além de trazer uma letra mais contundente e aprofundada, as imagens do clipe também mostram uma maior confluência com o assunto.
Em preto e branco, o que já desperta o tom de tristeza, o clipe consegue invocar uma revolta muito maior ao retratar o MC ao lado do DJ Nyack em uma favela, imagens que se alternam com cenas reais dos fatos ocorridos na ocupação. Essas gravações foram cedidas ao artista pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, entidade para qual o rapper pede ao final do clipe que sejam encaminhadas doações para as vítimas do Pinheiro.
A música foi cantada no Vídeo Music Brasil, da MTV Brasil, naquele ano. Ela levou Emicida a uma apresentação televisiva, o ajudou a ganhar fama, mas, mais do que isso, ela levou ao público um assunto muitas vezes “esquecido” pela mídia e instigou uma ação concreta ao pedir doações.
Mas, se as músicas e clipes parecem opostos, a referência a Cazuza os une. “O Portão do Céu” diz: “’Brasil, mostra a sua cara’ porque se o Cazuza tivesse aqui pra ver / Que tantos anos depois é a mesma merda / Só que agora é em HD” enquanto em “Dedo na Ferida” a rima é “Meus heróis também morreram de overdose, / de violência, sob coturnos de quem dita decência”.
Isso mostra que mesmo falecido há 25 anos, Cazuza continua relevante, como Emicida, que fez uma música sobre um fato pontual, mas que continua sendo cantada e debatida.
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