A semana passada será lembrada não apenas pelo acidente que vitimou o time da Chapecoense, mas também pelo fato de o ocorrido unir as mais diferentes pessoas em torno de uma mesma causa.
Mesmo em tempos de opinião cada vez mais forte e do ódio sendo espalhado pelos quatro cantos da internet, o time catarinense fez com que fosse despertada a solidariedade e a humanidade de cada um.
Demonstrando grandeza, até mesmo os times de futebol e suas respectivas torcidas deixaram de lado as rixas que levam pessoas a matar ou morrer e vestiram a mesma camisa.
E foi diante de um fato trágico que descobrimos ser todos iguais, independente do time, nação, gênero, classe social, religião, crença ou ideologia.
A partir dessa lição de solidariedade talvez devêssemos adotá-la para as práticas diárias e passássemos a olhar o outro como semelhante, o respeitando e ouvindo mesmo que em oposição ao que pensamos.
A leitura de Quem Cria, Nasce Todo Dia do arquiteto, urbanista e político Jaime Lerner pode ser uma ótima forma de colocar isso em prática ao deixar de lado as correntes ideológicas para ler aquilo que uma importante figura tem a dizer.
Embora possamos torcer o nariz ao associar a figura do autor à do político, o livro publicado pela Travessa dos Editores em 2014 merece ser lido independente do fato de o seu autor ser integrante de uma classe política bastante manchada no Brasil.
Isso porque o livro traz crônicas que contam um pouco da experiência de Lerner no exterior, a sua relação com chefes de Estado e importantes figuras do meio cultural, bem como relatos do seu meio familiar a social. Além disso, ler Jaime Lerner é o equivalente a ler um pedaço da história de Curitiba e do Paraná que ele ajudou a escrever. É o que torna a obra fundamental.
Se a cada passo renasço /
Pro laço não sucumbir /
A minha eu faço assim /
Como a do palhaço é fazer sorrir /
Missão /
Cansaço, fracasso, também senti /
Sem aço no peito, fi /
No almaço deixei cair /
Pedaço em pedaço /
Meu foco ao máximo pra extrair /
Um arregaço e ocupar /
Cada espaço que tem pra ir.
Rashid – Primeira Diss
Melhor do que isso é a forma leve adotada pelo autor, que por meio de pequenas crônicas permite uma leitura rápida e agradável ao tratar dos temas de maneira afetiva e bem-humorada, o que quebra a possível ideia de que um político deve ter uma linguagem rebuscada e burocrática.
Mas, é claro, ainda que deixemos de lado as questões que possam nos diferenciar do autor isso não apaga as suas falhas como, por exemplo, a responsabilidade pela morte do trabalhador sem-terra Antonio Tavares durante a marcha que o MST fazia rumo à Curitiba em 2000 e as privatizações feitas sem licitação. Entretanto, por meio do livro se torna possível conhecer um pouco mais e melhor sobre a pessoa Lerner e identificar a humanidade que faz dele um ser humano como nós.
Um dos textos, inclusive, trata diretamente desse assunto ao falar de um almoço entre ele e sua esposa com o imperador e a imperatriz do Japão:
“Ao final da cerimônia, quando todos estavam saindo, a Ilana apareceu. Estava dentro de uma sala do Jardim Botânico e eu a apontei para a imperatriz a apresentando como minha filha. Como não era possível a proximidade, ela colocou a mão aberta, espalmada, de um lado do vidro e Ilana do outro, tocaram-se pela transparência do material e do coração de cada uma. Silêncio. Muitos olhos boiaram em lágrimas com um gesto tão singelo e tão puro que significava mais, bem mais, que uma saudação: era como se fosse a imperatriz e Ilana rompendo as regras para se entregar às humanidades. Duas mãos separadas por um vidro a nos contar que somos todos iguais”.
Esse tipo de situação em que são apagadas as diferenças sociais é também tema de uma música do MC curitibano Thestrow, integrante dos grupos Mentekpta e Inthefinityvoz e que recentemente lançou seu segundo disco solo intitulado Eu Não Consigo Não Ser Eu. Mas é no trabalho anterior (Pense Bem Antes de Pensar) que a música “Poderia ser você” promove uma reflexão sobre o valor da cumplicidade.
Na letra é cantada e contada uma história que se passa no hostil ambiente urbano, local em que “o rato corre atrás do gato enquanto o cachorro se esconde” e o “resto de comida é luxo, lucro pra quem não tem”. É nesse cenário onde um menino pede dinheiro a uma moça em seu carro importado, que finge não ouvir e desconsidera a existência de uma pessoa que tem sentimentos como ela (“Pai tá sempre à frente é o herói do barraco / Mesmo não aguentando mais não demonstra ser fraco / Saco de lixo fuça pra achar uma solução / Pra sociedade ele é um lixo mas lixo tem coração”). Mas no mesmo dia o seu ato tem a devida devolução: a mulher sofre um acidente e sua vida fica nas mãos do garoto.
Dessa forma, Thestrow promove uma comunhão entre seres humanos que estariam até então bastante distantes um do outro, separados por um abismo social.
E se é possível encontrar semelhança até mesmo do “outro lado”, alguns artistas demonstram que nem o fato de estar no mesmo ramo faz com que haja harmonia entre eles.
É o que pode ser visto nas mais diversas “diss”, músicas que são feitas com o objetivo de um MC atacar o outro, fato criticado recentemente por Rashid, que inovou ao fazer uma música apontando o dedo para si mesmo e colocando frases que poderiam estar (e muito provavelmente estejam) na boca dos seus desafetos.
Com isso, Rashid vai contra a maré ao fazer uma autocrítica e criticar aqueles que usam a música para promover a diferença e a desunião (“Meu rap não é game, meu rap é vida, peso / De quem trocou a casa pela causa igual Takezo / Na lírica me atrevo feito Higuita / Vem da alma o que eu escrevo / Tipo uma sessão espírita / Psicografia, meu ritmo é poesia, neguim / Mas tenho ouvido várias track a esmo / No fim, pra mim, cada diss tem soado assim / Como se todo MC tivesse escrito pra si mesmo”).
E se a diferença tem pautado boa parte das nossas ações, espera-se que após a tragédia da Chapecoense possamos agir de maneira contrária.