No último dia 24 de outubro os rappers Emicida e Evandro Fióti fizeram com que o hip hop pisasse em um solo até então intocado por ele, a passarela do São Paulo Fashion Week.
O desfile da Laboratório Fantasma, a LAB, foi histórico tanto para o movimento quanto para o mercado de moda brasileiro ao fazer com que, além de colocar em evidência modelos negros e plus size, incluindo os cantores Seu Jorge e Ellen Oléria, o conceito da rua fosse levado para o maior evento fashion do país, promovendo a união de dois universos aparentemente díspares.
Mas se no Brasil essa estrondosa junção é uma novidade, nos Estados Unidos a relação entre a moda e o hip hop já vem de longa data.
Isso porque, é claro, apesar de a cultura não ser feita apenas de aparência, a indumentária se faz um elemento marcante ao se configurar como uma forma de expressão e identidade.
E é explorando esse conceito que o documentário Fresh Dressed (2015), disponível na Netflix, mostra essa relação exposta pelo diretor Sacha Jenkins por meio de entrevistas com importantes figuras nessa história, como os rappers Nas, Kanye West, Pharrell Williams, A$AP Rocky, Sean John Combs, Swizz Beatz, pessoas envolvidas no mercado como Damon Dash e Dapper Dan e também especialistas ligados à moda, como o estilista Riccardo Tisci e o editor da revista Vogue André Leon Talley.
A partir dessa pluralidade de vozes que o documentário de 1h22 mostra o quanto a vestimenta é relevante na cultura de rua e apresenta uma linha do tempo explorando a transformação ocorrida em mais de 40 anos, o que mostra, por exemplo, que em determinados momentos o mercado de marcas famosas se demonstra bastante próximo ao hip hop e em outros há uma tentativa de oposição.
E foi justamente tentando se diferenciar que o estilo dos negros norte-americanos surgiu nos anos 70 a partir do esforço de refletir nas roupas o estilo de vida que se adotara a partir de então.
Se diferenciando e se identificando, as jaquetas jeans personalizadas com os nomes das gangs viraram símbolo de rebeldia nesse primeiro período em que a distinção entre os jovens era tão grande que era possível até mesmo identificar quem era do Bronx, do Brooklyn, do Harlen ou do Queens somente a partir do estilo, que passou a sofrer a primeira onda de influência dos rótulos famosos a partir das ressignificações criadas por Papper Dan ao usar o tecido de marcas como Louis Vuitton para aplicar novos cortes e ressignificá-los.
“A maioria das pessoas urbanas não quer coisas feitas por outras pessoas urbanas. Querem coisas que elas não têm como conseguir. Querem comprar sonhos, como todas as outras”, Damon Dash, co-fundador da gravadora Roc-A-Fella e da marca Rocawear.
Com o sucesso vindo do uso feito por MCs como Eric b & Rakim, Dan também acabou chamando a atenção das empresas, o que lhe rendeu processos por direito autoral. Já para outras marcas o poder de fogo dos grupos de rap foi bastante positivo, como para a Adidas, que se tornou símbolo do gênero após a música “My Adidas”, do Run DMC, valorizar o estilo esportivo.
Essa simbologia de poder também passou a ter significado para outras marcas dentro da moda urbana, como Polo Ralph Lauren e Tommy Hilfiger, que se tornaram motivo de cobiça ao garantir o status que muitas vezes o jovem não tinha dentro de casa, mas que poderia demonstrar nas ruas.
E se as grifes já estabelecidas e que produziam para um público em geral passaram a ser consumidas, por que não apostar em uma que fosse desenhada de maneira direcionada para o crescente movimento hip hop? Foi essa a aposta da Cross Colors, que passou a dar mais certo quando foi vestida pelo personagem de Will Smith no seriado The Fresh Prince of Bel-Air (Um Maluco no Pedaço), exposição também conquistada pela Karl Kani, ao ser divulgada por 2Pac, e a Fubu, com LL Cool Jay.
Nesse crescimento cada vez maior sugiram também marcas como Rocawear, Sean John, Wu Wear e Path Farm, que disputaram mercado em um momento em que cada rapper passou a ter sua própria etiqueta.
É nesse ponto em que o caráter cíclico da moda fez com que marcas tradicionais como Versace, Yves Saint Laurent e Gucci tivessem maior representatividade tanto para o público quanto para os próprios artistas.
Nesse momento o documentário promove uma importante reflexão ao mostrar que as marcas de urban style não representam o estilo de vida que a maioria quer ter, ligado a um exibicionismo que muitas vezes faz com que pessoas matem e morram em busca do status que uma jaqueta ou um tênis podem proporcionar.
Entretanto, é importante notar que a briga entre as marcas voltadas ao público urbano e os grandes monstros do mercado fashion é consequência natural do que o próprio movimento ajudou a criar. Isso porque ao tornar uma manifestação em um produto do comércio, as grifes urban style ocuparam um outro patamar no qual há a disputa por um público que usa o seu dinheiro para obter destaque. E, seguindo por essa linha, se é possível comprar prestígio ele será maior ao obter um produto de etiqueta consagrada do que aquela que representa um determinado artista.
A pergunta é: Por que o Hip-hop deve instigar essa diferenciação que vem do dinheiro?
A resposta talvez venha do próprio Emicida, que fez com a passarela o que eles fizeram com a cadeia e a favela: “É necessário voltar ao começo”.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.