Não existe jeito “certo” de se expressar.
E também não existe jeito “errado”.
“Sendo a língua uma realidade essencialmente variável, em princípio não há formas ou expressões intrinsecamente erradas”, diz o doutor em linguística Sírio Possenti em Por que (Não) ensinar gramática na escola (1996, P. 86).
Não reconhecer essa variação é o mesmo que não reconhecer os diferentes grupos que compõem a sociedade, especialmente a brasileira, que conta com diversos cruzamentos étnicos da mesma forma que se hibridizam as normas da língua, o que torna difícil a missão de uma definição clara delas.
Ainda assim, existe quem empunhe a gramática e se coloque no papel de dono da língua para apontar o dedo. É o que o linguista Carlos Alberto Faraco define em Norma culta brasileira: desatando alguns nós (Parábola Editorial, 2008) como “norma curta”.
Ao constatar que a escrita é um bem cultural ainda restrito para poucos ele afirma que é “por isso também é que ela pode ainda funcionar entre nós como um fator de discriminação social, cultural e econômica. No fundo, ela não perdeu ainda entre nós seu defeito de origem, ou seja, continua recoberta por uma aura elitista que se materializa na norma curta, ou seja, na insistência em se interditar a ocorrência na escrita de fenômenos normais na fala culta. São picuinhas gramaticais, mas que ainda funcionam com certa força no jogo simbólico que, pela desqualificação linguística, discrimina e excluí. Por isso, é importante sempre abordar essa questão numa perspectiva social e histórica e não apenas linguística” (P. 61).
Assim, não existe preconceito linguístico que surge de maneira isolada. Sempre que uma pessoa “corrige” a fala de outra esse discurso vem acompanhado do racismo, da xenofobia, da discriminação social e todas as outras variações de preconceito vindas de quem não respeita as variações da sociedade.
Por esse motivo é que Faraco criou o termo “norma curta”, definida por ele como “uma concepção que apequena a língua, que encurta sua riqueza, que não percebe (por conveniência ou ignorância?) que o uso culto tem abundância de formas alternativas e não se reduz a preceitos estreitos e rígidos” (p. 66).
‘Fala de novo que baiano tem preguiça / estereótipo quebrado tipo unha postiça / Apertar um F5 nessa porra, tu precisa / Tabu mais velho que qualquer boneca da minha bisa’ Oxente, Nigga! – Oddish
É por meio dessa norma curta que a ignorância age, fazendo com que aqueles que não são capazes de reconhecer o valor do outro e da sua variação mantenham o seu papel de dominante ao diminuir os demais com “correções” e “piadas”. “A norma curta é o reino da inflexibilidade, das afirmações categóricas, do certo e do errado tomados em sentido absoluto. A norma curta é o mundo das condenações raivosas, das rabulices gramaticais”. (P. 95).
Claramente oposto a isso, Faraco diz que “a única autoridade em língua é o uso, isto é, a maneira habitual, comum, corriqueira de falar ou de escrever” (P. 102).
E é dessa forma, valorizando a sua variante e invertendo o jogo para cima daqueles que se utilizam do preconceito, que o rapper baiano Oddish torna a sua obra extremamente relevante no cenário do rap nacional.
Nascido no universo das batalhas de freestyle, a sua presença se solidificou por meio do disco Ponteiros Voam Feito Jatos (2014) em que, entre outras coisas, quebra o senso comum e usa a variação dialetal para afirmar sua identidade.
É isso que pode ser visto na música “Oxente, Nigga!” em que um eu lírico já revoltado impõe o respeito com a sua região, os seus costumes e a sua fala (“Fala de novo que baiano tem preguiça / Deixo o seu ego em óbito e com cheiro de carniça / cidade quente, o sol ensopa a tua camisa / se tu quer papo torto vai lá pra torre de pisa”).
Em tempos em que falar mal do trabalho alheio parece ser a fórmula para ganhar relevância, Oddish ainda mostra que prefere o caminho habitual ao demonstrar que o talento quebra todas as barreiras, inclusive do preconceito.
Aliás, seria injustiça olhar a sua obra somente pela via do “exótico”, afinal o seu trabalho vai muito além do fato de ele pertencer a uma localidade que, infelizmente, ainda tem pouca representação no cenário nacional.
Pena para o cenário, que deveria ouvir mais as suas rimas marcadas pelo subjetivo, temática que se faz presente até mesmo quando é o universo objetivo que está em pauta. É o que se nota na música lançada na última terça-feira pelo portal RND em que ele mais uma vez pede para não ser julgado sem que saibam da sua realidade (“Ontem eu quase morri / Não me julgue se não sabe o peso / Das merdas que eu vivi / Não me julgue pelo ódio preso”). E é nessa mesma faixa em que pode ser encontrada outra importante faceta do MC que ainda em outubro deve lançar o seu segundo trabalho, o EP Azul e Cinza: a de trazer versos polêmicos e imprevisíveis (Quase capotei um carro na Aquidabã / E ela diz que me quer, só que tem pouca fé / Porque viu que minha lombra não é sã / E o amor tá mais raro do que Bolsonaro na fila de um show do Dalasam).
E é dessa maneira, revelando o subjetivo por trás do objetivo, da mesma forma que o preconceito linguístico esconde um preconceito social, é que Odissh quebra paradigmas e revela uma obra maior, nos apresentando o seu trabalho de maneira bastante particular, assim como o passar do tempo, que para ele voa feito jato.