Curitiba começou 2017 com uma volta ao passado.
Em sua segunda semana de governo, o atual prefeito, Rafael Greca, mobilizou a Secretaria de Defesa Social, a Guarda Municipal e as polícias Militar e Civil para realizar uma fiscalização com o objetivo de “garantir a vida e o divertimento sadio da mocidade curitibana”, ação que começou, coincidentemente, na esquina da sua casa.
‘Entre calçadas de granito e avenidas sem calçada / Shoppings só pros ricos e sem nada na quebrada / Sem incentivo pro lazer, tubão é hit em disparada / Vidas jovens valem menos que a propriedade privada’. Hurakán – Contrastes
Em seu plano de governo, que A Escotilha analisou junto com o de todos os candidatos, o atual prefeito dizia que tinha como objetivo promover e incentivar a cultura local e oportunizar o aperfeiçoamento de todos os profissionais ligados ao segmento de cultura.
No entanto, antes mesmo de assumir o cargo, o chefe do executivo municipal cancelou a Oficina de Música de Curitiba que estava em sua 35ª edição, e posteriormente deixou de organizar o pré-carnaval e reduziu os recursos para a realização do carnaval.
‘Minha história é o contraste da cidade de onde venho / Aonde sobrenomes contam mais que o desempenho / Músicos bons, tocam cover / Quem faz música autoral, game over / Leis, projetos, praças, palcos / Produtoras culturais e seus contatos’.
O envolvimento de Greca com a cultura, aliás, rendeu polêmica no período eleitoral, uma vez que uma peça que pertencia à Fundação Cultural de Curitiba e foi dada como desaparecida da Casa Klemtz supostamente estaria em uma de suas propriedades.
Outra polêmica na qual o representante do poder municipal se envolveu foi o fato de dizer em palestra aos estudantes da PUC-PR que vomitou ao sentir o cheiro de um morador em situação de rua.
Eleito, uma das suas primeiras ações foi fechar o guarda-volumes que servia para que os desabrigados guardassem os seus pertences sob o argumento de que o parquinho seria destinado às crianças e que a era Fruet teria acabado.
Além disso, a escultura de uma bicicleta que estava em frente à prefeitura e serviu como um símbolo do comprometimento do município com a causa da mobilidade urbana foi transferida para o Parque Barigui.
‘Cidade caucasiana, com o racismo mais velado / Seja um ciclista aqui e cê vai ser atropelado / Seja preto em Curitiba e cê vai ser escalpelado / Seja pobre em Curitiba e cê vai ser crucificado!’
Em campanha, um dos argumentos dos rivais que mais o deixava irritado era quando sugeriam que Greca estava velho para ocupar o cargo e que a sua maneira de governar era ultrapassada.
E as medidas tomadas na primeira quinzena de governo mostram que eles estavam certos, uma vez que o diálogo não está em pauta enquanto são tomadas medidas sem levar em consideração a opinião da população, ou ao menos uma parte dela.
No entanto, isso não deveria ser motivo de espanto, uma vez que Rafael Greca de Macedo representa as mais profundas raízes das classes que detêm o poder político no Paraná.
Essa hegemonia política e social está presente na música “Contrastes” do MC curitibano Hurakán, que além de relatar o domínio das famílias tradicionais nos diversos âmbitos da sociedade curitibana, aponta também as possíveis consequências do que isso pode gerar: o racismo, a exclusão social e a violência institucional.
‘Cidade da frieza humana e do hedonismo / Dos governos cíclicos criados pelo nepotismo / Parques são cercados por grades e elitismo / Mantendo a favela longe aos olhos do turismo / Jantares de negócio e mesa farta / Eles são Roma. Mas nós somos Esparta! / Lerner, Greca, Melo e Silva / Sabbag, Silvério, Garcez, Stival / Ducci, Fruet, Pimentel, Richa / Moro, Neto, Souza…/ E volta a ficha’.
Bastante crítica, não se dá à toa a letra do MC que que recentemente lançou o EP Prólogo MMXVII e tem uma extensa e intensa história no hip-hop curitibano, uma vez que além do relevante trabalho solo ele também faz parte do coletivo Armadilha e anteriormente participou do Zero Grau Kingz e do lendário Comunidade Racional, do qual também fez parte o MC Rapzodo.
Mas maior ainda que a carreira de Hurakán é a de Rafael Greca e a de parte significativa dos políticos que compõe a classe no estado. É o que pode ser comprovado por meio da obra O Silêncio dos Vencedores – Genealogia, Classe Dominante e Estado no Paraná (Moinho do Verbo, 2001).
Resultado da tese de doutorado defendida na Unicamp, a obra mostra de maneira empírica como a formação dos grupos sociais superiores do Paraná estão intimamente ligados à economia, a política e a cultura.
Para estabelecer essas conexões, o professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPR Ricardo Costa Oliveira remonta a genealogia do poder no estado para mostrar o quão enraizadas estão as influências da classe dominante.
Sobre Rafael Greca, Oliveira diz:
“Em 1993, Curitiba cumpriu 300 anos de existência como vila. O então prefeito Rafael Greca de Macedo pertence a uma das principais famílias históricas do Paraná, a família Macedo, família de muitos prefeitos. O primeiro prefeito de Curitiba em 1835 foi José Borges de Macedo, o coronel Joaquim Pereira de Macedo foi prefeito em 1908-1912 e em 1930-1932, Oscar Borges de Macedo e Ribas o foi em 1938. João Macedo de Souza também o foi em 1945, 1946 e 1947. A ascendência da família do prefeito Rafael Greca de Macedo pode ser estabelecida para personagens que já detinham o poder político no início da vila de Curitiba em 1693”.
Essa relação de parentesco da qual Greca é um dos representantes serve de exemplo para mostrar o quanto as famílias históricas formaram de maneira central a classe dominante tradicional até as décadas de 1940 e 1950 e, como se vê, têm grande influência ainda hoje.
Ainda assim, ocorreu uma diminuição do poder dessas famílias no final do século XX, mas é possível observar que esse velho familismo é também uma tendência entre os novos políticos.
É o caso do vice-prefeito, Eduardo Pimentel, neto de Paulo Pimentel, e justamente o primeiro governador (em 1965) sem vínculo de parentesco com as famílias históricas paranaenses, mas que se casou com Yvonne Lunardelli, neta do “Rei do Café”, Geremia Lunardelli, grande proprietário de terras no Norte do Paraná.
Vale lembrar que no pleito municipal do ano passado estavam também Gustavo Fruet, filho de Maurício Fruet, prefeito de 1983 a 1986, e Maria Victoria Borghetti Barros, filha do atual ministro da saúde, Ricardo Barros, e da vice-governadora, Cida Borghetti. Além deles, figurava também Ney Leprevost, neto do prefeito de Curitiba em 1948 com o mesmo nome que ele, e Requião Filho, filho de Roberto Requião, que entre muitos outros cargos ocupou a chefia do estado por três vezes e que, por sua vez, é filho de Wallace de Mello e Silva, ex-prefeito de Curitiba.
Essas ligações que estão no centro do poder comprovam a conexão entre o Estado e as classes dominantes, uma vez que essas titularidades não podem ser escondidas, diferentemente de interesses e negociações que não podem ser postas no papel.
E, embora haja a participação política de famílias que representam a classe dominante mesmo que não ocupem cargos diretamente, o sistema paternalista insiste na importância de ocupá-los, uma vez que, como pode ser visto, não é muito grande a diferenciação entre a esfera pública e a privada.
Assim, o professor coordenador do Núcleo de Estudos Paranaenses da UFPR diz que “A posse do governo significa o uso de uma máquina de Estado forte que sempre utilizou a violência como argumento central por parte do grupo no poder. As três dimensões que caracterizam o Estado, nível local, regional e central, auxiliam na dialética do estado brasileiro, que é ao mesmo tempo forte e privatizável”.
E ter em suas mãos o poder do Estado faz com que os interesses políticos estejam representados, bem como ocorra uma maior solidificação dessa estrutura.
Dessa forma, é claramente visível que as atitudes do atual prefeito representam uma determinada classe que muito se incomoda com os jovens que se aglomeram em uma rua onde residem pessoas de alta classe, mesmo grupo social que enxerga os moradores em situação de rua como um problema, vê a bicicleta como um veículo que deve ser desprivilegiado em detrimento dos carros. Já a cultura deve ser marginalizada, mesmo que em campanha Rafael Greca tenha afirmado perante o anterior ocupante do cargo que tinha dinheiro, sim, para tudo.
Por esse motivo, ainda que os atos do atual prefeito se configurem como autoritários, eles não representam apenas a sua figura, mas sim toda uma classe que segue um acordo invisível e silencioso criado junto com a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais.
Dessa forma, o silêncio dos vencedores é assim definido pelo autor: “A classe dominante paranaense se caracterizou por padrões de continuidade pelos quais a sua história e as suas memórias deveriam ser filtradas. A produção do silêncio faz parte da identidade paranaense. Sucessivas ondas demográficas ocupam o território paranaense e reconfiguram uma identidade que sempre deve ser reatualizada e renovada para incluir os últimos recém-chegados. No entanto, poucas regiões do Brasil apresentam continuidades históricas tão expansivas na posse de poder político por parte de grupos familiares tão antigos quanto o Paraná. O arcaico convivendo e coexistindo com o moderno. A tradição política de continuidade do poder familiar do Paraná muitas vezes é vista como uma anti-tradição. Poucas regiões do Brasil apresentam elementos de continuidade no exercício do poder político por tão poucos grupos como no Paraná. Ao mesmo tempo que existem traços de continuidade, existe uma estratégia consciente ou não de produção do silêncio da memória e da identidade paranaense. Arquivos e lembranças da história regional foram destruídos. Configura-se o silêncio dos vencedores”.
E é nesses períodos, nos quais os vencedores desejam silenciar, que a arte deve gritar ainda mais alto.
‘Eles podem rasgar nossa carne
Mas o nosso espírito permanecerá forte como água.
Até que a última rocha se parta!’