Há pouco mais de um ano as cyphers tomaram conta do rap nacional.
Baseadas em vídeos em que uma música conta com diversos MCs, as produções se popularizaram pela chance de ver reunidos em uma mesma faixa diversos artistas em colaboração.
O resultado deu certo, ao menos em número de visualizações, e o formato se espalhou Brasil afora. Em uma busca rápida, é possível encontrar diversos audiovisuais que contam com representantes de Minas Gerais, Brasília, Bahia, Pernambuco, Belém, Vale do Paraíba e, obviamente, do eixo Rio-São Paulo.
Já a produção curitibana… Paulo Leminski explica:
“Sempre pasmei que Curitiba não devolvesse criativamente o que come e consome. Quer dizer, que não restituíssemos em produtos culturais na mesma medida da prosperidade desta vasta classe média que habita, anima e desanima esta pacata Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. Cidade classe média típica, a mais típica cidade classe média do Brasil, tão típica que é cobaia de todas as campanhas publicitárias do eixo Rio-São Paulo, Curitiba abriga vasta população que almoçou, jantou, tem o que vestir e dirigir. Mais: que pode ver filmes, peças, shows, comprar livros, editar discos, fazer cursos, aprender línguas, viajar… Que pode, enfim, ter acesso a esse excesso que se chama ‘cultura’”.
O trecho presente no ensaio “Sem sexo, necas de criação”, presente no livro Ensaios e anseios crípticos, ainda é realidade 20 anos após a sua publicação.
Não que Curitiba produza pouco. Pelo contrário, o volume só aumenta. No entanto, uma grande fatia desse poder de consumo cultural apontado por Leminski é empregado não no consumo local, mas sim naquilo que vem dos maiores centros. O resultado é que parte significativa dos artistas locais só devolve aquilo que recebe.
“Natural que quem esteja tão absorto em consumir não sinta a necessidade de produzir”, diz o próprio Leminski em outro ensaio do livro, “Culturitiba”.
Dessa maneira, ainda que se alimente bem, o cenário cultural local permanece raquítico.
No entanto, é dessa pobreza que muitas vezes surgem as melhores novidades, como observa o escritor, poeta, crítico literário, tradutor e professor curitibano.
E é refletindo sobre todos esses aspectos que na última sexta-feira (24), foi lançada a cypher 18 Killa BoomBap, idealizada pelos beatmakers Dario e Leo Spektrum.
De maneira original, indo na contramão da maioria das produções, que em certa medida já estão estagnadas, a iniciativa não é apenas uma reunião de MCs que disputam para ver quem consegue falar melhor de si mesmo.
18 Killa BoomBap reflete, exala e exalta Curitiba.
Tem que ter ganância, mas não mate o movimento / MCs, não rapper de impulsionamento / Muita droga, muito grife / Muita moda, muito hit, muito tudo / Só esqueceram do caráter / O movimento futurista de união tá igual after.Dow Raiz – 18 Killa BoomBap Cypher
Nela, vemos MCs que gritam mais em nome da cena do que de si. Além disso, e principalmente, a cypher se diferencia por valorizar e agregar a figura do beatmaker e do DJ. Para chegar a esse resultado, Dario e Léo Spektrum produziram um beat para cada MC e é possível notar que, conhecendo os estilos de cada um, foram feitos sob medida.
Para virar as batidas, nada melhor do que convidar um DJ. Assim, o DJ Ploc adiciona scratchs e colagens e traz à composição, ao mesmo tempo, inovação e tradição.
Dessa forma, embora tenham havido outras experiências oriundas da cidade, a 18 Killa é a que melhor representa a autenticidade de Curitiba colocando o dedo na ferida e na cara ao apontar todas as falhas levantadas anteriormente pelo nosso poeta mais reconhecido.
E por falar em reconhecimento, um dos beatmakers mais reconhecidos do país, Vinícius Nave, é o responsável por abrir os trabalhos, desta vez como MC, criticando a droga do momento e o puro ego de reis cegos, bem como dar as boas-vindas a “Cwb Season, pique um trem para busan / Convoque seu Saddam / Loco de Lean? Não, a mente tá sã”.
Já Nairobi, o MC número Pi, além de prestar homenagem ao lendário DJ Primo, critica o complexo de vira-lata curitibano: “Cíclico, hoje sou um MC cínico / Rap Curitibano pros contemporâneo, tru / Os daqui querem os de fora, nossas rima ignora / Seus ídolo me adora desde 2001”.
Na sequência, Dow Raiz, que já participou de uma cypher no Rap Box, um dos principais canais voltados ao gênero no país, prega o respeito pelas raízes do hip-hop: “Tem que ter ganância, mas não mate o movimento / MCs, não rapper de impulsionamento / Muita droga, muito grife / Muita moda, muito hit, muito tudo / Só esqueceram do caráter / O movimento futurista de união tá igual after”.
E se a crítica aos modismos é um dos principais pontos levantados na produção da Marlon Ramos Films, Hurakán, um dos MCs em atividade mais antigos da cidade, mostra que sua atuação não é passageira: “Tamo de volta a 1993, quando eu já tava no palco, mas não lembro de vocês / No tempo do rap do microfone e toca-disco / rapper tinha que ter ideia e os djs faziam risco / Os produtores tinham que entender de sample / sujar os dedos, ir nos sebos / e o estúdio era um templo”.
Mais adiante, assim como Nairobi, Hurakán critica o fato de os artistas de fora serem tão valorizados aqui: “Eu vi as grife de graff serem menos que as grife / Eu vi os graff de grife ir pra New York e Munique / Enquanto isso Curitiba fez vocês ficarem rich / ou na pior das hipóteses pegaram algumas bitch / Eu vi umas panca surgir / eu vi umas banca sumir / eles vão desencanar, e eu continuo aqui”.
Igualmente crítico, Cadelis segue uma linha incisiva e criativa: “Vivendo no país do Gol…Pista / Muito 171 gera os 7 a 1 fora o show, assista / sociedade baseada em ter pontocom…quista / Vocês ainda riem dessa piada pronta, Ra…cista”.
Já o MC Cabes, que tem diversas músicas marcadas por uma atmosfera leve, adota na ocasião uma posição mais aguda: “Justiça é tatuar e prender no poste / E eu sou louco / Riem por causa do frio, mais um mendigo acorda morto / desvia o foco, cês são Jornal Nacional / querendo ibope a todo custo, ilude as massas, mas não são real / Amazônia vendida, ganância na mão dos homens / igual o futuro da barriga que ronca de fome / Rafael Braga, o exemplo da justiça do estado / seu combate às drogas mostra: deu tudo errado”.
Enquanto isso, o mais esperado não deixou a desejar. Nel Sentimentum, após muito tempo afastado, ressurgiu afirmando a sua contribuição para o rap curitibano e, assim como Dow, enaltecendo as origens do movimento: “Desculpa aí, se eu sumi, saí pra expandir / pra não viver de vender isso daqui / de cwb my G, eu vim e vi / a cena surgir e contribui / transmitindo o que aprendi / não desisti do objetivo de expressar o que eu vivo / e através do rap eu me descodifico/ nada mais que isso, mantenho a essência do princípio / e sem jogar o jogo eu descomplico”.
Assim, se, por acaso, a cidade demorou para estar no mapa das cyphers, não foi à toa. Isso porque, ao usar um formato já cristalizado, os envolvidos na 18 Killa BoomBap Cypher conseguiram subverter a ordem que vinha sendo gerada para criar algo original e se impor no cenário nacional.
Leminski aplaudiria.
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